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sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

como eles conseguem?

como um bom obsessivo - ou não - não teria como não entrar neste blog e escrever, escrever, nem sequer na busca por algum sentido nisso tudo, mas simplesmente pelo fato, ato, de escrever em si, que me alimenta. acabei de ler o texto de deleuze e guattari sobre como fazer um corpo sem órgãos. estou completamente destruído. havia engasgado conceitualmente hoje cedo e até agora estava ainda sem ar. fui ler esse texto e pronto. estou asfixiado e morrerei dentre em pouco. mal se anuncie este ano novo.

caramba. como disse, não busco nada, exceto essa verborragia. esse falatório para diminuir as intensidades e dúvidas e desejos. posso dizer que as coisas vão se encaixar, mas é só que sem esse entendimento conceitual eu não consigo seguir. eu não consigo escrever uma dramaturgia, eu não consigo nem mesmo entender o porquê de ter escolhido este romance. e olha que eu já havia dito aqui mesmo ter entendido. mas eu sou assim. nada do que eu escrevo poderá ter validade se eu ainda estiver vivo. então... especulo-me.

ovo. estrato. imanência. subjetivação. significação. câncer. cso. opõe. sadomasoquista. prazer. desejo. encerra. em si. organismo. órgãos. corpo. transcende. eu. psicanálise. não farei forças. tecido.

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Diogo Liberano

"não estamos mais diante de uma crítica do Édipo, e sim da construção do conceito de multiplicidade"


DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. 1995-1997. Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34. 715 pp.

Ovídio Abreu Filho 
Prof. de Antropologia, UFF 


Em 1997, publicado seu quinto volume, concluía-se a edição brasileira de Mil Platôs, de Gilles Deleuze e Félix Guattari, que se iniciara em 1995. O intervalo entre a edição original dessa obra, que é de 1980, e a de sua tradução completa para o português não deixa de revelar as dificuldades na recepção desse livro que faz avançar o trabalho de criação de uma nova imagem do pensamento e que questiona os pressupostos dominantes na filosofia e nas ciências humanas: a crença em uma tendência natural do pensamento para a verdade, o modelo do reconhecimento e a pretensão de um fundamento.

Mil Platôs, que compartilha com O Anti-Édipo o subtítulo Capitalismo e Esquizofrenia, não é uma continuação linear das teses propostas no livro de 1972: de um volume a outro há mudança de tom e avanços da criação. Mesmo que pudéssemos imaginar que o Anti-Édipo tivesse como subtítulo "pela filosofia", nele a construção ético-filosófica se fez através de uma crítica. Mil Platôs, ao contrário, é um livro fundamentalmente positivo: não estamos mais diante de uma crítica do Édipo, e sim da construção do conceito de multiplicidade, para além da oposição do Um e do Múltiplo, e dos dualismos da consciência e do inconsciente, da natureza e da história, do corpo e da alma.

A teoria da multiplicidade efetua uma interpretação do real que conjuga uma construção ontológica e uma leitura do mundo e da sociedade que surpreende com uma nova distribuição dos seres e das coisas: não admite unidade natural, uma vez que não se apóia em nenhuma necessidade e não visa a nenhum prazer; não reconhece a falta, uma vez que não se constitui em referência a uma unidade ausente (recusando, pois, a noção de desejo como falta); e não aceita nenhuma transcendência - seja na origem, como idéia ou modelo, seja no destino, como sentido historicamente desenvolvido. A perspectiva da imanência e o conceito de multiplicidade fazem do pensamento uma atividade ética - sem modelos e finalidades transcendentes - avessa a qualquer conforto moral ou orientação histórica.

Mil Platôs é composto de quinze "platôs", conceito que, tomado de empréstimo a Bateson, designa uma estabilização intensiva e, no caso, uma multiplicidade conceitual. Pois os conceitos, para Deleuze e Guattari, devem determinar não o que é uma coisa, sua essência, mas suas circunstâncias. Explica-se, assim, que cada platô possua um título relacionado a uma data. Os títulos enunciam um campo de problemas e as datas indicam que se pretende determinar a potência e os modos de individuação de um acontecimento. Cada platô realiza um mapeamento, cujos movimentos descrevem um mesmo percurso: parte-se do interior de um ou mais estratos e de seus dualismos na direção de suas condições de possibilidade, das "máquinas abstratas" que os efetuam e os determinam como atualizações; simultaneamente, os estratos são associados aos agenciamentos de poder que lhes são anexos e primeiros; por fim, em um outro giro, o pensamento contorna as máquinas abstratas e as remete a um plano de consistência a que se acede por desestratificação: revela-se assim, nesse percurso, a heterogeneidade, a coexistência, as imbricações e a importância relativa das diferentes linhas que compõem uma multiplicidade. E ainda que a edição brasileira tenha subdividido o original em cinco volumes, percebe-se que os editores buscaram recortar o livro de acordo com uma certa unidade de problemas.

O primeiro volume contém, além do prefácio à edição italiana (onde os autores avaliam a novidade e a recepção do livro), uma apresentação da ontologia das multiplicidades. Na Introdução: Rizoma, recusa-se a idéia do pensamento como representação, sua submissão à lei da reflexão e da unificação, e apresenta-se Mil Platôs como livro-rizoma que, abolindo a tripartição entre o mundo, como campo de realidade a reproduzir, a linguagem, como instância representativa, e o sujeito, como estrutura enunciativa, é capaz de conectar-se com as multiplicidades. A escrita rizomática, que se define pela operação de subtração dos pontos de unificação do pensamento e do real, realiza um mapeamento e uma experimentação no real que contribui para o desbloqueio do movimento e para uma abertura máxima das multiplicidades sobre um plano de consistência. O platô seguinte, 1914. Um ou Vários Lobos?, consiste em uma crítica da psicanálise que aprofunda as reflexões iniciais sobre o conceito de multiplicidade. O terceiro platô, 10.000 a.C. A Geologia da Moral (Quem a Terra Pensa que É?), apresenta a ontologia como geologia das multiplicidades, constituídas por movimentos de estratificação e desestratificação que se conjugam com movimentos de territorialização e desterritorialização traçados por máquinas abstratas que operam sobre diversos planos de consistência.

O segundo volume contém dois platôs fundamentais: 20 de Novembro 1923. Postulados da Lingüística e 587 a.C. Sobre Alguns Regimes de Signos. Evitando pressupor qualquer relação de representação e de causalidade - material ou simbólica - entre os sistemas de signos e os sistemas maquínicos dos corpos, Deleuze e Guattari dissolvem os postulados de base do estruturalismo e da teoria marxista da ideologia. Atacam os pressupostos da semiologia, questionando o primado da comunicação e sustentando ser a "palavra de ordem" a função primeira da linguagem. Criticam a distinção langue/parole e destronam a independência e autonomia da langue com os conceitos de agenciamento coletivo de enunciação e regimes de signos; não admitem uma semiologia geral, negando qualquer privilégio de um regime de signos sobre os outros.

O terceiro volume congrega platôs essenciais para a compreensão da micropolítica e da esquizoanálise. 28 de Novembro de 1947. Como Criar para Si um Corpo sem Órgãos retoma e desenvolve o conceito de "corpo sem órgãos" proposto em O Anti-Édipo, conceito que permite pensar o desejo como processo que produz o campo de imanência de seus agenciamentos e não na dependência da idéia do corpo como origem das necessidades e lugar dos prazeres. Criar, selecionar e articular os corpos sem órgãos plenos, eis o programa da esquizoanálise. O platô Ano Zero. Rostidade faz o mapa de uma semiótica mista, que combina significância e subjetivação, encarados como procedimentos de comparação e apropriação que asseguram uma política de inclusão diferencial que ignora a alteridade e que define, segundo os autores, o racismo europeu. Os platôs 1874. Três Novelas ou "O que se Passou?" e 1933. Micropolítica e Segmentaridade, ensinam que o real é feito de linhas, isto é, de movimentos heterogêneos que operam segmentações (binárias, circulares e lineares), duras ou flexíveis, constituindo dimensões molares ou moleculares, e fugas criadoras, tudo em perpétua coexistência e interpenetração. A diferença de natureza dos planos molares e moleculares - que remetem a sistemas de referência distintos, linhas sobrecodificadas de segmentos e fluxos mutantes - não impede, pelo contrário, sua pressuposição recíproca. Os autores propõem uma visão original sobre o que denominam centros de poder, definidos por suas operações de conversão dos fluxos moleculares em segmentos molares, e sobre o Estado, pensado como agenciamento de reterritorialização ou movimento de sobrecodificação que organiza a ressonância dos centros de poder.

O quarto volume reúne dois platôs (1730. Devir-Intenso, Devir-Animal, Devir-Imperceptível e 1837. Acerca do Ritornelo) dedicados a contornar a visão mimética da natureza, que se sustenta em uma ontologia onde o ser se diz de modo análogo segundo suas distribuições categoriais. Contrapõem a univocidade à equivocidade e analogia do ser, afirmando-o como potência de diferenciação irredutível às idéias de modelo e de imitação. Como pensar, então, os entes concretos e suas relações? Os autores respondem que os entes são diferenças e suas relações devires, afetos ou modificações, que devem ser pensados independentemente das idéias de forma, função, espécie e gênero. O conceito de devir acompanha o abandono das concepções substancialistas e da perspectiva "hilemorfista" da individuação (simples encontro de forma e matéria), para pensar os corpos como singularidades e seus devires como processos irredutíveis às sobrecodificações do organismo, do significante e do sujeito. Nesse sentido, os devires são moleculares e minoritários; imperceptíveis (anorgânicos), indiscerníveis (assignificantes) e impessoais (assubjetivos). Nesse universo de intensidades, o conceito de "ritornelo" enfrenta o problema da consistência ou da consolidação de agenciamentos de heterogêneos, permitindo pensar a arte fora de qualquer modelo mimético.

O quinto e último volume encontra sua unidade em uma filosofia política que postula um conjunto de teses críticas às concepções racionalista e liberal, bem como ao marxismo. Três dos platôs aí reunidos (1227. Tratado de Nomadologia: A Máquina de Guerra7000 a.C. Aparelho de Captura1440. O Liso e o Estriado) deslocam a questão política do direito e da liberdade civil para o problema do domínio dos fluxos. Deleuze e Guattari afirmam, contra o racionalismo liberal, que o direito é impotente para controlar o Estado, uma vez que lhe é interior e representa uma forma específica de violência; contra o marxismo, questionam a dialética (a idéia de que uma sociedade se define por um modo de produção e por suas contradições), o evolucionismo e toda idéia de progresso histórico. O problema político é recolocado a partir da distinção entre dois grandes tipos de agenciamentos, que diferem em natureza mas que se pressupõem e que são coextensivos a toda a história humana: a máquina de guerra e o aparelho de Estado. A criação desses conceitos, a análise de suas transformações e de suas relações, e a distinção de duas modalidades de temporalização e de espacialização configuram novas direções para a compreensão das sociedades: não defini-las por suas contradições, mas por suas linhas de fuga; considerar não as classes e sim as minorias como potências revolucionárias; definir as máquinas de guerra não pela guerra, mas, antes, por um certo modo de ocupar e de inventar novos blocos espaço-temporais.

Finalmente, a Conclusão: Regras Concretas e Máquinas Abstratas retoma, na forma de um léxico, os principais conceitos desse livro, cuja atualidade está, não apenas no rigor de suas análises, mas, sobretudo, na sua potência de resistência às forças que buscam limitar o pensamento a uma reiteração das exigências do mercado ou de supostas necessidades históricas. Nesse sentido, Mil Platôs procura instigar - ao mesmo tempo que neles se apóia - movimentos que tentam escapar do controle dos axiomas capitalistas e das "necessidades" postuladas pela moderna teleologia liberal, bem como do niilismo que, ao contrário do que se gosta de imaginar, é imanente aos ideais de "progresso" embutidos nesses axiomas e nessa teleologia.

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

trilhas... sonoras

que engraçado. é sempre muito incrível a especificidade de cada obra. estou adaptando o romance e pela primeira vez, algum trabalho meu me solicitou de primeira: trilha sonora. a minha relação com trilha nunca foi muito direta, sempre fico esperando uma exigência pelo som, mas ela quase nunca vem. mas agora, lendo as coisas escritas, pensando nisso tudo, eu só consigo ver ouvindo. eu só consigo ver o que estou escrevendo como canto - dentro de uma longa partitura musical.

devo dizer, parece fútil, mas me vem em primeiro lugar a elegância. as notas precisas que criam o ambiente sem nada, quase sem nada. a elegância da iluminação que junto ao som harmoniza e transtorna a nossa percepção. eu tenho pensado, as descrições do romance são escritas em cena sim, mas talvez pela luz e pelo som. pela composição - em camadas - do espaço sonoro e visual. mas a princípio está tudo vazio. tudo vazio.

sim, posso também pensar em adorno. a trilha é aquilo que dá a costura, que dá o enfeite mais preciso e formal. não há problema nisso, é sim também uma composição que visa adicionar à cena camadas novas de informação e sentido. é hora de começar a ouvir as trilhas dos filmes. remexer os cds e achar outras trilhas já esquecidas. ir pensando nos instrumentos. nas composições. em quem poderá se unir a nós e embarcar nessa trilha...

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Diogo Liberano

como adaptar um romance?

não sei. talvez por isso tenha sentado um instante, nesta madrugada, para escrever sobre o que venho escrevendo. faz um dia que terminei de ler o romance e sem muito planejamento, comecei a produzir cenas de capítulos do romance. comecei pelo final. sabe-se lá o motivo de tal escolha. mas está interessante. terminei dois capítulos e aconteceram muitas coisas nesse curto percurso.

primeiro. não tenho dúvida de estar escrevendo uma obra nova. tenho alguns novos personagens e acho que até o fim outros vários serão criados. há cortes severos e - foi necessário me convencer logo disso - todos os longos trechos descritivos de um romance não podem estar presentes numa escrita dramática. e - o que mais me diverte - é administrar a guerra entre os diferentes tempos verbais.

o mais interessante tem sido ver como é preciso ter um foco absurdo. porque realmente é muito excessiva a quantidade de letras palavras e tramas que cabem num romance. de fato, em se falando de uma peça teatral, essa quantidade precisa cair, reduzir, sumir. há - pelo menos por minha parte - a necessidade de ser direto e reto e econômico. e, para minha surpresa, a aposta de que é preciso também ser leve e divertido.

começar escrevendo as cenas de trás para frente ocorre porque, penso agora, aproveito o frescor da leitura recém-acabada. estou com as partes finais mais frescas e está sendo fácil revirar um dado capítulo e encontrar as partes que eu mesmo lembro e me interesso por resgatar. que experiência maravilhosa. quero escrever essa peça em no máximo duas semanas, ao todo.

preciso pontuar que isso não significa muito ainda porque o grande desafio é ver como eu consigo tornar presencial certos acontecimentos que pelo romance me são contados após já terem acontecido. como acabar com o narrador, com o personagem que vai me contando tudo? eis o grande desafio dessa adaptação/criação. sobretudo, creio que é extremamente desafiador ter que me virar com as rubricas e falas para dar conta de toda a subjetividade que as longas descrições de um romance são capazes de nos dar. é foda. muito deliciosamente foda.

hoje vou dormir mais cedo um pouco. antes de dormir, porém, uma lida novamente nas dez páginas já escritas e um acerto ali, outro acolá. não vai adiantar transformar um romance de quase quinhentas páginas em uma peça de cinco horas. 

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Diogo Liberano

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

banks violette

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As obras acima são de Banks Violette.
Fonte: http://acidolatte.blogspot.com/2009/05/banks-violette.html

alejandro almanza pereda

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Os trabalhos acima são do artista Alejandro Almanza Pereda.
Fonte: acidolatte.blogspot.com/2010/12/alejandro-almanza-pereda.html

chema madoz

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Todas as imagens acima são de trabalhos do artistas Chema Madoz, pesquisadas e retiradas de sites na web.

quantas mães cabem numa só?

é possível que eu tenha que ceder dessa vez. isso de, por ser homem, e usar a noção de paternidade está para mudar. sou também mãe. e estou aqui pensando - em paralelo aos personagens do romance - quantas mães podem haver dentro dessa peça de teatro?

em VAZIO É O QUE NÃO FALTA, MIRANDA, as atrizes estavam em cena tentando montar cenas e eu, diretor do espetáculo, também em cena estava, tentando junto a elas assinar a autoria, ser pai (ou mãe), enfim. mas agora, com esta montagem, tenho pensado em lançar tudo para o espaço da cena e me tirar dela. o que não quer dizer que não possa existir algo meu ali em cena, convertido num personagem.

eu estou pensando. temos a mãe de K. temos o narrador da história da mãe de K. e temos os atores que interpretam os personagens (como o próprio narrador, a própria mãe, o próprio K. e todos os demais). ou seja, a ficção se constrói aos poucos. temos primeiro os atores em cena. dali, um decide interpretar um personagem e nele se agarra, do início ao fim ele o será e ponto final. eis uma possibilidade. podemos ter outro ator que se agarre noutro personagem, que é justamente aquele que comenta todos os outros, mas não como um diretor o faz e sim como um autor. estamos contando uma história e o seu ator pode estar ali, revelando a relação paternal entre criador e criatura, entre artista e sua obra. eis outra opção. e há ainda aquela já tão desbravada em MIRANDA, do ator em relação com seu próprio personagem, sendo ele e sendo a si próprio e se confundindo e virando um híbrido sobre o qual já não sabe mais discernir nada. eis outra opção.

penso que possa ser interessante - a partir da confusa especulação feita no parágrafo anterior - multiplicar as mães possíveis dentro dessa obra. multiplicaremos assim, também, seus filhos. e o tal K. personagem, é também K. peça de teatro. é também K. personagem. ou seja, são mais pontos de vista que podemos traçar em cena. mais olhares que podem se cruzar e se problematizarem. ou seja, o que teremos enfim será um tiroteio em meio ao qual a verdade nasce toda flechada. talvez seja isso, não? o meu objetivo?

mas, no entanto, veja bem - não desejo especular dessa vez a linguagem teatral. não desejo falar do ser ator, desejo falar do ser autor - talvez por isso a predileção pela narrativa posta em cena. (ainda que saiba plenamente que nesse espetáculo o ator é autor, o diretor é autor, o autor é autor e a luz, cenário, trilha, figurino, ..., também o são). a reflexão que quero fazer saltar é sobre as relações de criação. tanto no sentido dos pais que criam um filho, como do artista que cria uma obra. e tudo isso para contar esta primeira história, que é a da criação de um filho por sua mãe. esta história é a primeira e sob a qual toda reflexão nascerá.

repito: a reflexão que quero fazer saltar é sobre as relações de criação. só que todas, nessa peça, são ficção. desde o narrador que conta a história. desde os personagens que vivenciam. desde a dúvida quanto ao seu papel - não por ter que interpretá-lo - mas por ser um dado papel algo que assuste, que seja de difícil compreensão ou aceitação. tudo serve para contar a história e para desbravá-la. nada para mostrar para nós, espectadores, como é difícil criar. não é isso. a dificuldade está, antes, em ser humano e em processar essa existência.

acho que começo a entender algumas coisas.

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Diogo Liberano

fragmentos

"Ah, meu amor! Pode ser que eu precise desesperadamente inventar histórias para mim mesma, mas me senti obrigada a tecer algum fio que ligasse o furdunço sem sentido daquele quintal ao que havia de melhor no homem com quem eu tinha casado". (p. 450)
"Quando aquele bebê se contorceu em meu seio, do qual se afastou com tamanho desagrado, eu retribuí a rejeição - talvez ele fosse quinze vezes menor do que eu, mas, naquele momento, isso me pareceu justo. Desde então, lutamos um com o outro, com uma ferocidade tão implacável que chego quase a admirá-la. Mas deve ser possível granjear devoção quando se testa um antagonismo até o último limite, fazer as pessoas se aproximarem mais pelo próprio ato de empurrá-las para longe". (p. 463)
"'Então, é isso... É quase para, como se diz, saber que você está vivo. Para mostrar às outras pessoas que elas não o controlam. Para provar que você é capaz de fazer alguma coisa, mesmo que possa ser preso por isso.'
'É, é por ai', disse ele, com ar apreciativo. Aos olhos de Kevin, eu me havia superado". (p. 381)
"Franklin, a casa inteira estava tomando antidepressivos". (p. 161) 

eu amo meu filho

de fato, as dúvidas não significam muita coisa além de indagações. e eu estou cheio delas, a cada segundo mais uma se junta a este imenso medo que é trazer à vida um projeto que se dificulta e se revela mais difícil e mais impossível a cada olhar que a ele eu lanço. mas eu o amo. eu o amo. ainda que possa ele me destruir.

terminei há um minuto de ler o livro. o romance. apaguei as luzes da sala. enchi a pequena xícara branca de café, recém-passado. escuto stairway to heaven, do led zeppelin. e tenho a sensação plena de querer trazer à cena a história deste romance. até então as dúvidas venciam e problematizavam de fato este desafio. mas agora, as dúvidas me movem para mais perto deste desejo. eu sei que é isso. e por mais que me assuste, é essa potência toda que me faz estar vivo, outra vez neste início de outra madrugada.

gosto deste romance porque ele sugere tudo o que não é. porque é fácil achá-lo um simples best-seller, no sentido de ter sido premiado e muito lido e apenas isso. mas para além desses fatos, sobrevive nele uma profundidade, um buraco negro, um não-saber que o eterniza, ainda que só neste meu agora. é bom, mas também ruim. é excessivo e por vezes um pouco enfadonho. parece que a autora quis ter mais páginas escritas do que realmente sua história era capaz de gerar. mas de súbito, em uma única página, ela sabe ser tudo isso que na frase anterior eu justamente dizia sentir falta.

eu me apaixono inevitavelmente por tudo aquilo que me devolve a complexidade da minha existência. eu me apaixono desesperadamente por tudo aquilo que me empesteia a dúvida e o excessivo piscar dos olhos e as excessivas sinapses e o excessivo buscar.   

e me toca. me emociona. e me permite fazer analogias com a tragédia. com a tragédia grega. mas é do meu tempo. sou eu ali escrito. é sim romance passado noutro país, noutra cultura, mas que importa? se os personagens são humanos, são como eu e qualquer outro. de fato, risco o livro com palavras tais quais édipo, medéia, corpo sem órgãos, capitalismo, creonte, meu deus, tudo nele cabe. temo ter encontrado um romance que tem em si possibilidade de ser exemplo para a façanha filosófica que é refletir sobre nosso tempo e nossa sociedade.

como este blog é desde sempre um espaço cujo acesso é aberto, não me permito ainda abrir aqui o romance e outras informações que permitam identificá-lo. preciso deixar tudo dentro da barriga e gestar, apenas gestar. mas, tendo terminado a leitura, posso especular com maior clareza sobre o porquê de querer montá-lo (enquanto ouço i've had the time of my life). tenho clareza de ter encontrado um excelente anti-édipo que freud adoraria converter em algum complexo inédito.

quero encenar a história desse romance porque ela é a forma mais sedutora, encontrada até agora, de filosofar sobre a existência humana. ora, se deleuze afirmava que filosofar era justamente criar conceitos, munidos destes - e por eles contaminado, intrigado e apaixonado -, faltava-me encontrar um porto capaz de falar sobre eles sem que minha peça de formatura virasse uma palestra filosófica. sim, meu papel - ainda de acordo com deleuze - tem a ver com punhados sensíveis de massa. não é isso, não é bem isso. mas é o que me veio agora à cabeça. noutro dia eu posto aqui o que de fato ele afirmava ser. mas para além do que possa ser dito, estou certo.

por agora, importa essa clareza, de ter encontrado uma fábula sobre a qual eu possa testar conceitos e multiplicá-los e desdizê-los e refazê-los. eu quero dizer, por meio desta fábula o que eu conto a ti pode ser muito profundo, cheio de referências, mas é a princípio apenas uma história. e uma baita história: a história de uma mãe que tem a vida destruída por seu próprio filho. e que não cessa a tentativa de compreender algo que explique tudo isso. numa sequência de acontecimentos - e tempos - que me fazem pensar sobre maternidade e paternidade, sobre responsabilidade e sobre indiferença.

adoro, porém, a possibilidade de estar gestando um filho errado. mas não me ausento da responsabilidade por sobre ele. vamos juntos.

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Diogo Liberano

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

ouvi isso outro dia:

um filho é uma promessa de mundo.

e sorrateira, a metalinguagem vai de novo se colocando em meu caminho. por que é que tudo fica mais interessante quando o outro que eu desenho em ficção é justamente amante da ferramenta sem a qual este outro não seria possível? por que será que falar de filhos para mim é o mesmo que falar de obras? por que a mãe de k. sofre sua existência e eu sofro também a sua criação em cena? isso preciso estar refletido na cena? isso pode ficar guardado aqui, feito reflexão e não feito produto final? devo eu ter vergonha desse... desse narcisismo, dessa necessidade de ver-se sempre refletido, identificado, posto sob um foco e com poder de ação e fala?

há algo de errado em querer falar da responsabilidade que é se fazer arte, da responsabilidade que é se gerar um filho?

gerar e gerir. está tudo misturado mesmo, não tenho jeito. vou seguindo. como se já não soubesse o que está por vir.

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Diogo Liberano

um longo dia

ontem fui dormir já era manhã. são quase duas da madrugada e eu estou querendo desligar o computador e cair sobre o romance ou sobre o caderno novo que fiz hoje. estou tragado, tomado, mais uma vez - não era para eu me surpreender - pela impossibilidade. a cada segundo o que eu julgava possível parece menor e pior. eu a cada segundo preciso ir mais longe do que sei e sou capaz para transformar esse projeto em algo de fato possível de ser feito.

fico muito feliz e grato que o elenco já convidado e fechado - mesmo sem nada saber sobre o projeto - esteja dentro. mandei e-mails para todos eles perguntando coisas e todos responderam. sinto-me devolvido, apesar de não fazer sentido receber um e-mail sobre questões de uma nova peça quatro dias antes do fim do ano.

de fato estou tomado. é a minha desculpa para amenizar o sono e continuar me cansando. estou estruturando coisas e tudo que era incrível num passo seguinte me parece tão imaturo. que bom que eu acho que tenho tempo para ir vendo as possibilidades se queimando. sim, existe um período que elas se queimam só de pensar nelas com um pouco mais de intenção. algumas porém hão de restar e é por sobre estas que eu deverei me ater.

fiz um caderno hoje e nele estou especulando aquilo que não posso abrir aqui. sim, Isto é um mistério. e como autor, a princípio, amo a solidão. preciso dela para procriar e desenhar as feições dos monstros e dos anjos. preciso do caderno e do punho para brincar de construir sonhos. nem tudo posso escrever aqui porque certas palavras precisam de pausa e de escuridão. precisam do meu peito e do peso da minha mão. é vero. é lindo, mas é também concreto e sincero. como eu já faz tempo percebi não saber funcionar de outro jeito - que não escrevendo sobre cada passo e cada respiração - tive que ceder ao caderno, ao mesmo tempo em que estou aqui confessando estar escrevendo noutro espaço (também de criação).

o café aqui ao lado. os olhos semi-cerrados. quanto mais difícil mais eu persisto. eu devo estar louco e isso é bom, eu sinto, eu sinto. hoje a coisa se abriu para além do romance e nele comecei a me ver mais do que antes. aliás, acho que pela primeira vez vi a minha mão de autor coçando uma interferência. querendo dizer o que acha sobre tudo isso. a minha mão querendo mudar palavras e acrescentar um grito, acrescentar uma cena, um personagem, um pedaço meu disfarçado desde o princípio. é a minha maneira de purgar a existência, desculpem-me. isso não é novo e também não é crime. e ainda que fosse - prendam-me.

queria só registrar dois acontecimentos muito bonitos e velozes que foram por sobre mim lançados no final desta noite. estava sentado neste mesmo lugar que agora estou. num quarto, sobre a cama de solteiro, encostado à parede, com o laptop no colo, o livro entre os braços, caneta, celular, mp3 player, rolo de papel higiênico e muitas canetas coloridas. daí minha mãe abriu a porta do quarto com um sorriso contido. algo muito lindo e genuíno. de mãe que já é o auge do que pode ser o ser mãe. então eu tirei os fones do ouvido e ela apontou de forma boba em direção à cozinha. e ficou fazendo uma cara esquisita. eu entendi que o café estava pronto e que eu podia ir buscar. e ela perguntou você toma mesmo café sem adoçante? eu disse que sim e blábláblá. mas para além de tudo isso, conservo para sempre o rosto da minha mãe, leve, sereno, bonito e atento. como se naquele momento em que ela abriu a porta, ela tivesse descoberto algo novo sobre mim e que pedira contemplação e não falatório. ela me olhou como se dentro de mim ela tivesse passado a tarde inteira e tivesse nisso descoberto algo que talvez nem seja nenhum motivo de festa. mas ao me olhar, eu me senti nela reconhecido e nisso eu também a tive, plena, sem pane, sem texto que antecipasse ou adiantasse o nosso encontro.

enfim, eu fiquei movido. era isso. e depois, mais tarde, antes de ir dormir, meu pai passou no quarto para falar do filme que acabara de assistir. e conversa vai e conversa vem, começamos a falar da aposentadoria dele. e eu dizendo o quanto não via a hora de ele parar de trabalhar e começar a fazer somente o que quisesse, afinal - é verdade - o meu referencial sobre a vida do meu pai é trabalho. não há mais nada ou quase nada. ele só trabalhou até agora. e em breve completa seus 60 anos e eu não vejo a hora de vê-lo livre e autoritário, visitando os filhos onde quer que estejam e contrariando todo o planejado. enfim, ao dizer essas coisas para ele, ele foi concordando, falando e falando e quando saiu, encostando a porta e virando para trás, me disse, eu nem estava aqui quando você nasceu. e, pela primeira vez na minha vida, ele se fez tão presente como nunca pude imaginar ser possível. não sei se tinha certo lamento em sua voz, ou se era só um exemplo para o fato de ter trabalhado desde sempre. mas foi tão inteiro e tão complexo esse simples dizer dele que eu fiquei mexido ao extremo. e continuo.

o que importa, no final das contas, é que estamos aqui neste agora. e ele me vale, a despeito de qualquer possível trauma. durmo supreso. durmo embrulhado, feito presente. tornado real e possível, tornado agente. dessa minha história, dentro dessa minha família. como é possível se renovar sem mover um cisco, não? isso que foi dito/visto me fez pensar na força do gesto como criação de espaço para a ação do verbo.

não importa tornar tudo claro aqui. importa conservar em mim o gesticular bobo da minha mãe e o riacho de sentidos represados no olhar do meu pai ao cruzar a porta. há mais nisso do que tudo o que escrevi até agora. há muito mais. e é disso que também estou falando.

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Diogo Liberano

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

um poema para K.


Ele, o Proboscídeo

ele olha
será que vê o adiante?
não.
talvez veja dentro.
dentro do distante.
possível previsão de um futuro ainda incerto.



ele olha
será que vê o disforme?
sim.
talvez veja o manto
que cobre as coisas
que se dizem existentes.



ele olha
hoje eu aqui a sua frente
será que vê em minha desforma
um caminho possível
um destino capaz de ser meio?



ele olha
e quanto mais eu falo mais ele some
em meio ao mundo de palavras
que eu lanço aqui nesta vala
buscando dizer
aquilo que pode apenas ser visto.



Fonte: http://lendoarvoreseescrevendofilhos.blogspot.com/2010/06/ele-o-proboscideo.html

quem é ele

estou tomado nesta madrugada a entender que corpo é esse de K. que personagem é esse dentro dessa sociedade que é a nossa, do capital. a princípio ele é qualquer coisa que não se sabe o que é e que sequer responde a um código (que o explique). e então, como fazer com esta coisa para a qual não há explicação? logo dentro de um sistema - o nosso, o do capital - que tudo explica e que a tudo tem uma explicação (a ser vendida)? como fazer?

seria K. o tal corpo sem órgãos?

calma. deleuze aponta o capitalismo como um sistema potente e sempre capaz de se recupar. ou seja: mal se tenha produzido algo novo - como K. - o sistema então se desdobra e o faz caber dentro de si. o capitalismo se alimenta das aberrações e as tornam produto, possibilidade, moda e tudo então se acostuma e anseia, novamente, por outra surpresa. é a maneira de dar conta do tempo e da nossa fome. inventando notícias, sabores para o verão, cores "novas" para a próxima estação.é uma forma de dar conta do que extrapola a possibilidade do controle.

recodificação. é algo como uma atualização de um programa de computador, que tolera - depois de uma nova versão - os xingamentos que eram até então assinalados com erro no word. recodifica-se. o capitalismo age nesse sentido muito mais rápido do que o catolicismo. a igreja católica está demorando muito tempo para aceitar a utilização da camisinha como necessidade e não mais como pecado.

a eternidade que na bíblia é metáfora e depõe contra a própria religião, para o capital se renova a cada dia. pois é fácil ser eterno se você pode nascer de novo a cada dia. a cada estação tem um carro, a cada mês nova quantia. a cada ano uma nova vida. a cada segundo uma nova cifra.

Um corpo social se define perpetuamente pelos fluxos que correm sobre ele, de um pólo a outro, e é perpetuamente codificado, e há fluxos que escapam aos códigos, e depois há o esforço social para recuperar tudo isso, para axiomatizar tudo, para remanejar um pouco o código, para dar lugar aos fluxos perigosos: pois há jovens que não respondem ao código, usam um corte de cabelo imprevisto, o que se vai fazer? [...] http://www.verbeat.org/blogs/schizoblogg/arquivos/2005/06/gilles_deleuze.html

ok. nada está claro, tudo bem, sem problemas. mas é importante tentar enxergar K. em meio a tudo isso. eu fico me perguntando o que significa pegar esse romance e pensá-lo sob a ótica d'O ANTI-ÉDIPO. isso me faz pensar em anti-SENSACIONALISMO, anti-SUPERFICIALISMO. isso me faz querer contar essa história com humanidade e sinceridade. isso me faz querer tocar na ficção para sê-la, por inteiro. para dar respiração, corpo, voz, alma e poder, enfim, confessá-la.

eu gostaria mesmo de confessar a ficção. que lindo isso, eu vejo agora. ter força o suficiente para confessar a verdade desta ficção. confessar aquilo que dentro dela me chama até ela e pede por olhar, por ponto de vista que a interprete em sua complexidade e não em sua faceta best-seller. poxa, pode ser muito bom. pode ser muito bom.

o que fazer quando no meio da sua sala aparece um elefante? um elefante branco? um improdutivo? uma trans-amazônica? o que fazer quando o improdutivo está sentado em plena sala de estar? como torná-lo produtivo sem vendê-lo? como extrair dele algo que não seja dinheiro? como ouvi-lo sem cobrar pelo tempo perdido? como se relacionar com o improdutivo e bailar seu horror, sua dor por estar vivo?

ele é tudo o que quero descobrir. e, juntos, eu e meus atores, vamos descobri-lo. e amá-lo. e sê-lo em seus pedaços e incompreensões. não para julgar. não para responder. vamos ser K. para atentarmos ao simples fato de que K. podemos ser. e que isso diz respeito ao nosso tempo.

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Diogo Liberano

domingo, 26 de dezembro de 2010

"Deleuze e nós"

Publicado em 14 de março de 2010

Se há um nós no meio de certo filósofo é porque seu pensamento conceitual continua capaz de atrair interferências
Esse título é plágio da fórmula “Espinosa e nós”, presente em um pequeno texto escrito por Gilles Deleuze (1925-1995) em 1978, retomado em 1981, no final de seu Espinosa – Filosofia prática. A fórmula era assim entendida: “Nós no meio de Espinosa.” E se há um nós no meio de certo filósofo, no meio das vagas e labaredas de suas obras, é porque seu pensamento conceitual continua capaz de atrair nossas interferências, justamente por força de tudo que acontece em seu meio. Evidentemente, esse nós não sugere unanimidade intelectual ou de sentimentos. No mínimo, é um plural de convergências e divergências dos mais diversos matizes. E cada um desse nós, aventurando-se como pode, retoma a pergunta: que acontece no meio de Deleuze?
Acontecem afetos afirmativos, sente-se no rosto um novo frescor e novos ardores, nova maneira de termos encontros até inocentes com o pensamento, sem o cultivo da morte da metafísica ou do fim da Filosofia. Nesse meio, evitamos o hábito do obituário e a presunção dos transcendentes. Por que esse meio de Deleuze nos livra disso e mantém viva uma interessante possibilidade do pensamento filosófico? Não só pela perspicácia, pelo humor e até beleza de muitos dos seus textos, e nem apenas pelo aspecto saboroso de alianças que ele estabelece ao longo de uma quebradiça história da Filosofia. Sim, história quebradiça, porque, ao invés de condenada a blocos da monotonia cronológica, essa história pode ser aberta a viagens plenas de vigor, tão rigorosas quanto intensas. E quando ela se abre assim nesse meio? Quando o pensar se sente tomado por uma dramaturgia de idéias, por um problemático jogo de forças desterritorializantes, forças que se exercem como seleção e recriação de horizontes conceituais que pulsam nos grandes ou pequenos sistemas filosóficos. Sente-se isso no meio de Deleuze, seja por leve inspiração indireta, seja quando o acompanhamos diretamente em suas curtas ou longas estadas o obrigando a pensar. É que, em vez de pensar sobre isto ou aquilo, esse meio deleuzeano nos faz experimentar a necessidade de pensar com, postura que leva o conceito não à presunção de comandar, mas à tarefa de se determinar com aquilo que ele determina, postura que vai esculpindo as condições necessárias para que as idéias se sintam bem a serviço da expressividade do caso, do acontecimento, das questões, dos problemas, das frases alheias, desta ou daquela singularidade. É o que se pode notar até mesmo em um breve esboço dos grupos de escritos aí encontrados.
1. Com efeito, nesse meio, a escrita nos leva a passear com novos olhos por paisagens conceituais que julgávamos fixadas em estudos certamente relevantes, mas não únicos. E eis que ganhamos um novo Hume com Empirismo e subjetividade (1953), livro que nos remete à idéia de um empirismo superior, graças a relações exteriores aos termos relacionados. Ganhamos um novo Proust com Proust e os signos (1964; 1970), no qual, ao invés do apego ao passado empírico, o que se enreda em mundos de signos a serem desvendados é o aprendizado de um homem de letras.
2. E mais: ao lermos Nietzsche e a Filosofia (1962), e até o pequeno Nietzsche (1965), além do decisivoEspinosa e o problema da expressão (1968), assim como a retomada do pequeno Espinosa (1970) emEspinosa – Filosofia prática (1981), o que vemos conceitualmente justificado é a junção Nietzsche-Espinosa como guerreiros afirmativos, desses que combatem por uma vida eticamente valorizada e não moralmente depreciada. E não seria abuso juntarmos a essa dupla o nome de outro guerreiro, François Châtelet, a quem Deleuze, em Péricles e Verdi – A filosofia de François Châtelet (1988) presta uma digna homenagem ao ativar o conceito de combate na imanência.
3. Os incorporais dos estóicos ganham efervescente operatoriedade em Lógica do sentido (1969), dimensionam a idéia de acontecimento nesse livro, que também nos reanima quanto a Epicuro, a Lucrécio. Compreende-se a coloração bergsoniana desse meio com a leitura das linhas de diferenciação já armadas em O bergsonismo (1966). E como que aplicando uma crítica de Bergson a mistos mal compostos, encontramos importante desmontagem do misto denominado sado-masoquismo em Apresentação de Sacher-Masoch (1967).
4. Em outro cruzamento de latitudes e longitudes desse meio deleuzeano, uma nova explicitação conceitual da dobra barroca nos surpreende em A dobra – Leibniz e o barroco (1988). E boa surpresa reaparece nessa mesma obra, por força da idéia de acontecimento: reencontramo-nos com o conceito de ocasião atual, de Whitehead. Há toda uma variação de perspectivas que se acumulam nesse cruzamento. Com efeito, pouco antes, Deleuze publicara seu benquisto e conhecido Foucault (1986). Nesse cruzamento de atenções, está em pauta a questão das combinações das forças atuantes no homem e das forças do fora. Se, com Leibniz, nossas forças se combinam com aquelas de elevação ao infinito sob a forma-Deus, o problema que agora se coloca já não é esse, e nem mesmo aquele que consiste em submeter à forma-Homem as relações entre nossas forças e as que configuram nossa finitude na vida, no trabalho e na linguagem. O problema que se impõe a ambos é o da dissolução da forma-Homem por efeito de outra composição: as forças atuantes no homem combinam-se com forças de ilimitação do finito, aquelas que potencializam a produção de combinações praticamente ilimitadas de conglomerados finitos de componentes. É fácil notar uma das linhas favorecidas por esta combinação: a linha de proliferação dos controles na sociedade.
5. Mas nossas viagens por esse meio não param aí. Encontramos inovações na maneira pela qual, em Superposições (1979), são conceitualmente pensadas as operações com que Carmelo Bene cria seu teatro menor. Em O esgotado (1992), por sua vez, é com Samuel Beckett que nos encontramos, um Beckett que obriga Deleuze a distinguir conceitualmente o esgotado (que desliza por disjunções inclusivas) do fatigado (que pratica o jogo das disjunções exclusivas): enquanto o fatigado só esgotou a realização e já nada pode realizar, o fatigado esgota todo o possível e nada mais pode possibilitar, coisa que lhe ocorre de várias maneiras. Há uma intensidade no esgotamento, assim como, na pintura de Francis Bacon, há intensidade na dissipação da imagem. Essa pintura é acompanhada em Lógica da sensação (1984), obra que tematiza a passagem da matéria-forma à matéria-força.
6. Visitamos também o cinema e a literatura. Mas não para falar sobre este ou aquele filme, sobre este ou aquele romance. Com o socorro de filmes, de estudos dessa arte, dos que pensam a respeito do seu trabalho cinematográfico, trata-se de elaborar conceitos do cinema, isto é, de discriminar seus signos e de pensar relações constitutivas dessa arte em suas variações decisivas. É o que lemos em Cinema 1: imagem-movimento (1983) e em Cinema 2: imagem-tempo (1985). Além do cinema, há muita literatura conceitualmente pensada nesse meio deleuzeano. É o que ocorre no livro escrito por Deleuze em companhia de Félix Guattari, Kafka – por uma literatura menor (1975). Neste livro, certas noções ganham duradoura consistência, como a de agenciamento, a de devir imperceptível, de máquina social etc. E nele também aprendemos que fazer fugir é muito mais que criticar. Essa auto-exigência deleuzeana é praticada justamente em Crítica e clínica (1993), uma vasta reunião de textos, muitos dedicados à escrita literária: crítica, como traçado do plano de consistência da obra, e clínica como traçado de linhas sobre esse plano; o delineamento do bebê como combate, o de uma lógica extrema sem racionalidade, o da avaliação imanente, o dos cristais do inconsciente etc.
7. Esse meio ainda se abre à prodigiosa multiplicidade de outros recantos, como aqueles em que se reúnem os mais variados textos e entrevistas: Diálogos (1977; 1996), escrito com Claire Parnet;Conversações (1990), A ilha deserta (2002); e Dois regimes de loucos (2003), coletâneas extremamente importantes para quem se interessa pelas múltiplas facetas teóricas e práticas dos debates culturais e políticos contemporâneos.
8. Não apontamos ainda outros acontecimentos que duram nesse meio deleuzeano graças à colaboração havida entre -Deleuze e Guattari: uma nova teoria do desejo em O anti–Édipo (1972), desejo não mais marcado pela falta, mas por uma produtividade coextensiva ao meio natural-social-histórico; um vasto e complexo inconsciente espinosano distribuído em planos intensivos em Mil platôs (1980); e nova concepção do que seja ou deva ser a própria Filosofia. Sim, o meio deleuzeano é um convite para que estejamos atentos a relações de ressonâncias com outros domínios, relações não hierárquicas entre filosofias, ciências e artes, a respeito da Ética e dos combates na imanência pela dignificação do viver…
É claro que esses oito itinerários pelo meio Deleuze poderiam ser multiplicados. O que nos obriga a perguntar: seria esse meio o de uma dispersão de temas meramente justapostos ou, ao contrário, submetidos a um modelo interpretativo? Nada disso. Nele, qualquer coisa pode forçar o pensamento filosófico a cumprir sua única tarefa: a de sentir e pensar conceitualmente o jogo problemático constitutivo da coisa em seus encontros, o jogo que envolve a diferença e o problema em pauta a cada caso. Tarefa difícil e tematizada de modo exemplar em Diferença e repetição (1968). É que, a cada instante, o pensamento recai em um jogo antigo, o jogado entre quatro paredes da representação: a identidade do conceito, a analogia do juízo, a oposição dos predicados e a semelhança do percebido. Como subverter este jogo a cada instante? Tarefa difícil, para a qual o meio deleuzeano conta com uma proposição ontológica irredutível a receituários metodológicos: na experiência real dos encontros, todo e qualquer ente se diz univocamente como correspondências problemáticas entre diferenciações virtuais e diferenciações atuais. Assim, a problemática da diferença ganha uma nova imagem do pensamento filosófico.
Luiz B. L. Orlandi

é doutor em Filosofia pela Unicamp, mestre em poética pela Universidade de Besançon (França) e professor do Núcleo de Estudos da Subjetividade da PUC-SP. Autor de A voz do intervalo (Ática, 1980), organizador de A ilha deserta (Iluminuras, 2006) e tradutor de várias obras de Deleuze


Fonte: http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/deleuze-e-nos/

"Confrontar-se com o inumano"

Publicado em 14 de março de 2010

Influência de Jacques Lacan está ligada a sua maneira de abrir as portas para uma outra figura do homem
Vladimir Safatle
Deveríamos levar a intervenção analítica até os diálogos fundamentais sobre a justiça e a coragem, na grande tradição dialética?”. Talvez essa pergunta, enunciada por Jacques Lacan no início dos anos 1950, sirva para introduzir a peculiaridade do que esteve em jogo no interior de sua experiência intelectual. Pois, afinal, eis uma questão que não parece exatamente evidente. Por que um psicanalista, alguém cuja exigência profissional consistiria em tratar sofrimentos psíquicos e patologias mentais, deveria se preocupar com a “grande tradição dialética” ou com valores morais que não parecem ter muita utilidade em situações clínicas, já que dizem normalmente respeito ao campo das relações sociais? Não seria mais adequado afirmar que a intervenção analítica deveria ser levada a deparar-se com questões um pouco mais precisas, como a estrutura neuronal dos afetos ou os paralelismos orgânicos relativos a estados de depressão, catatonia etc? 
De fato, essa afirmação de Lacan era peculiar por indicar uma tentativa de larga escala em reavaliar o sentido deste setor sensível das práticas médicas que podemos chamar de “clínica das afecções mentais” ou simplesmente de “psicologia”. Projeto fundacionista que ficava claro quando Lacan fazia afirmações como: “Toda psicologia, inclusive esta que fundamos através da análise é apenas uma máscara, e algumas vezes um álibi, da tentativa de penetrar o problema da nossa própria ação, que é a essência, o próprio fundamento de toda reflexão ética”. Quer dizer, a psicologia não seria, por exemplo, uma reflexão sobre a estrutura das faculdades mentais e funções intencionais tendo em vista o tratamento de distúrbios, transtornos e síndromes cuja causalidade estaria, em larga medida, vinculada àquilo que normalmente chamamos de “psíquico”.  Ela seria, juntamente com a psicanálise, o setor avançado de uma teoria da ação que fornece o fundamento para toda reflexão de natureza ética, ou seja, toda reflexão ligada àquilo que se impõe à conduta humana como um dever-ser, como uma orientação a partir de valores. 
Vale a pena insistir na radicalidade dessa posição. Pois, afirmar que psicologia, psicanálise são setores de uma teoria da ação significa dizer que seus objetos (como a memória, o desejo, a sexualidade, a percepção) não têm realidade substancial alguma para além de uma reflexão sobre a ação e seus condicionamentos, suas inibições, seus sintomas, suas angústias. Ação que não é simplesmente reação ao meio ambiente, ato reflexo, instinto cego, mas impulso em direção à realização de valores que se impõem à vida. 
Esse é o ponto central se quisermos entender como, afinal, Jacques Lacan se transformou, juntamente com Freud, em um clínico cuja influência e cujas questões tiveram a força de ultrapassar o campo técnico da práxis analítica e contribuir, de maneira decisiva, para a maneira como compreendemos o presente e seus desafios. Pois da mesma maneira que é simplesmente impossível entender o século 20 com suas promessas utópicas sem apreender o impacto social do pensamento freudiano, talvez seja impossível entender o início do século 21 sem passar por Lacan. Não apenas devido à maneira com que, atualmente, conceitos seus são mobilizados para dar conta de questões maiores no interior da política, da teoria social, da filosofia, da crítica da cultura; mas também devido à maneira com que autores fundamentais para a contemporaneidade, como Michel Foucault, Gilles Deleuze, Jacques Derrida e, mais recentemente, Alain Badiou, Judith Butler, Ernesto Laclau, Slavoj Žižek construíram suas questões em confrontação e diálogo com Lacan. 
Quem quer ser fiador dos devaneios burgueses? 
Dizer que a psicanálise é, no fundo, a tentativa de penetrar a essência, o fundamento de toda reflexão ética pode parecer, a princípio, algo temerário. Pois sabemos como toda clínica coloca em funcionamento distinções entre o normal e o patológico, entre um estado de saúde e uma situação inaceitável de sofrimento. Sabemos também como a psicanálise foi, em muitos momentos, responsável pela aproximação entre a noção reguladora de “normalidade” e uma certa adaptação a valores e ideais de auto-realização socialmente partilhados. Ela mesma colaborou para que tais valores e ideais mudassem de configuração e aparecessem menos ligados a exigências de repressão e de conformação a padrões estáticos de conduta. No entanto, não é desprovido de interesse lembrar como, em última instância, Lacan nunca confundiu tais demandas de auto-realização com o que realmente estaria em jogo em uma situação analítica. 
“É aceitável reduzir o sucesso da análise”, perguntará Lacan, “a uma posição de conforto individual, ligado seguramente a esta função fundamentada e legítima que podemos chamar de serviço dos bens – bens privados, bens da família, bens da casa, outros bens que também nos solicitam, bens da profissão, da cidade?” Ou seja, estaria o sucesso da análise necessariamente vinculado à restituição da capacidade do sujeito em agir de maneira bem sucedida na realização de valores normativos no mundo do trabalho, na esfera familiar, na polis, esferas cuja racionalidade estaria submetida ao que Lacan chama aqui de serviço dos bens? A resposta do psicanalista francês é simples e direta: “Não há razão alguma para fazermos o papel de fiadores dos devaneios burgueses”. 
De fato, a afirmação não poderia ser mais clara a respeito do que Lacan tinha em vista. Pois ele estava disposto a insistir no fato de a psicanálise ter nascido em um momento de crise profunda da modernidade ocidental. Maneira de lembrar que ela é o sintoma maior dessa crise que nos levou a colocar em questão nossos ideais normativos sobre auto-identidade, sexualidade, modos de socialização, justiça e, sobretudo, nossas idéias sobre o que estamos dispostos a contar como racional. Assim, ela seria indissociável de uma reorientação profunda referente àquilo que pode aparecer como dever-ser próprio a uma ética. 
Não deixa de ser extremamente importante perceber como Lacan acabava por antecipar um movimento que será articulado de maneira mais sistemática por Michel Foucault. Pois desde o seuHistória da loucura, Foucault insistia na dependência entre a normalidade presente no horizonte de práticas psiquiátricas e uma reflexão de ordem moral que alcançará sua forma mais bem acabada através do vínculo entre loucura e perda da autonomia da vontade, loucura e alienação, tal como aparece na constituição da psiquiatria moderna no início do século 19. Pois trata-se de perguntar qual o preço a pagar para que a vontade possa aparecer como autônoma, quais processos disciplinares e normativos é necessário internalizar para que possamos reconhecer a conduta pressuposta na estrutura valorativa em operação na família, no mundo do trabalho e em outras instituições como ideal de normalidade. Dessa forma, Foucault pode colocar uma questão central: em que o estabelecimento de um campo empírico do saber com suas práticas e incidências sociais, como a psiquiatria e a psicologia, é devedor de uma reflexão de ordem moral? E é Foucault que perguntará, mais tarde e em tom que não deixa de nos remeter a Lacan, se seria possível recuperar um modo de relação a si, de cuidado de si resultante de uma ética que não fosse “fiadora dos devaneios burgueses” de auto-realização e autonomia. 
Uma ética do inumano 
Mas quando Lacan fala de um fundamento da ação ética que apareceria como princípio de orientação para a cura analítica e para a reconstrução da própria noção de normalidade, o que ele entende afinal por “ética” nesse contexto? Talvez a frase mais célebre a esse respeito seja: “Proponho que a única coisa a respeito da qual se possa ser culpado, ao menos na perspectiva analítica, é de ter cedido em seu desejo”. Não ceder em seu desejo seria, afinal, o vetor de orientação para a reflexão psicanalítica sobre a ação, sendo que, de uma certa forma, a verdadeira fonte de sofrimento psíquico estaria vinculada à consciência tácita do sujeito, em um ponto essencial, ter cedido em seu desejo. 
A princípio, nada mais nebuloso do que esse tipo de colocação de Lacan. Afinal, o que ele tem exatamente em mente? Não devemos ceder nas exigências particularistas de nosso desejo, na afirmação de nossos sistemas pessoais de interesse e de expectativas de satisfação reguladas pelo princípio de prazer?  Responder tais questões exige compreendermos melhor o que Lacan quer exatamente dizer por “desejo”. 
Toda pessoa que já ouviu falar de Lacan conhece sua noção de desejo como falta, não falta de um objeto determinado da necessidade, mas pura negatividade desprovida de objeto natural. Daí a noção do desejo como “falta-a-ser”, como perda irreparável. Nos seus piores momentos, tal conceito de desejo acabou por alimentar uma certa estética da finitude e da incompletude, como se estivéssemos diante de alguma forma parisiense de teologia negativa marcada pela consciência resignada do gozo impossível. 
Muitas foram as críticas contra tal noção de desejo, sendo que a mais conhecida veio de Gilles Deleuze e Félix Guattari, em O anti-Édipo. Seu alvo não era a pretensa metafísica da negatividade presente no conceito lacaniano de desejo. Pois a maneira com que a psicanálise procura socializar o desejoproduziria um desejo marcado pela negatividade, pela perda, pela falta. No entanto, “nada falta ao desejo”, dirão os dois, “ele não está em falta em relação ao seu objeto. Na verdade, é o sujeito que está em falta com o desejo, ou é ao desejo que falta sujeito fixo; só há sujeito fixo graças à repressão”. No entanto, devemos nos perguntar de maneira mais precisa o que Lacan tinha em mente ao falar que a verdade do desejo era ser pura negatividade. 
Talvez a melhor maneira de compreender esse ponto é lembrando como Lacan não partilha essa idéia clássica, ao menos desde os estudos de Durkheim sobre o suicídio em situações de anomia, de que o sofrimento psíquico na modernidade estaria ligado à perda de relações substanciais estáveis e fixas onde cada um sabe quais são as condutas e valores que devem ser assumidos, qual o lugar que cada um deve assumir no interior de uma vida social que se oferece como totalidade. Ao contrário, para Lacan, a verdadeira fonte de sofrimento era resultante do caráter repressivo da identidade, dessa identidade que devemos internalizar quando passamos por processos de individuação e de constituição social do Eu. Daí porque Lacan será tão sensível às temáticas vanguardistas de dissolução do Eu e de desarticulação de seus princípios de síntese enquanto condição para o advento de uma experiência capaz de realizar exigências de autenticidade. Isso a ponto dele afirmar ser a análise uma “experiência no limite da despersonalização”. 
Esse ponto é importante por nos lembrar que, ao falar do desejo como pura negatividade, Lacan tinha em mente essa potência de indeterminação, essa presença, em todo sujeito, daquilo que não se submete integralmente à determinação identitária da unidade sintética de um Eu, que não se submete à forma positiva de um objeto finito. Ou seja, a falta própria ao desejo é, na verdade, o modo de descrição de uma potência de indeterminação e de despersonalização que habita todo sujeito e que Lacan chamará em certos momentos de infinitude. Não deixa de ser irônico o fato de que, ao menos nesse ponto, Lacan é extremamente próximo de quem mais criticou seu conceito de desejo, a saber, Gilles Deleuze. O mesmo Deleuze que insistia na potência interna da indiferença que corrói toda determinação, nessa expressão do ser que nos leva a afirmar, com Scott Fitzgerald, que “toda vida é um processo de demolição”. Demolição que ocorre quando desvelamos essa “franja de indeterminação da qual goza todo indivíduo”. 
Nesse sentido, “não ceder em seu desejo” só pode significar a exigência de se confrontar com o que aparece como “inumano” no interior do desejo, como desprovido da imagem identitária do homem. Tal confrontação é afinal o que mobiliza a exigência de “coragem” que a intervenção analítica traz, já que ela nos exige pensar individualidades que não são fundadas exatamente na coerência unitária das condutas, na coesão dos ideais, mas na capacidade de absorverem experiências que se colocam no limite da despersonalização. É exatamente isso que Lacan entendia por “sujeito”. Resta saber o que pode ser um conceito de “justiça” capaz de estar à altura do que Lacan tem em vista. 
 Talvez isso nos explique um pouco do forte interesse que o pensamento de Lacan ainda desperta em diversos projetos intelectuais da contemporaneidade. Pois talvez todos eles partilhem da crença de que, se quisermos forjar um dispositivo de pensamento capaz de forçar o aparecimento de uma práxis renovada, não devemos procurar atualizar regimes de humanismos, mas dar forma a nosso desconforto com um certo projeto antropológico de homem. Nesse sentido, Lacan pode nos ajudar a compreender como a modernidade foi também o espaço de uma outra concepção do humano, uma concepção que insiste na importância de experiências de confrontação com o inumano, com o despersonalizado, com o indeterminado para a formação de uma práxis emancipada. Pensar como a verdadeira práxis virá da capacidade que sujeitos devem desenvolver em se confrontar com o que não tem a figura da “humanidade” do homem: eis uma tarefa que Lacan nos legou. 
Vladimir Safatle é professor de Filosofia da USP e autor de, entre outros, A paixão do negativo: Lacan e a dialética (Editora da Unesp, 2006), Lacan (Publifolha, 2007)