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domingo, 24 de abril de 2011

apre-

É chegado o momento da formatura. E ao contrário do que se poderia supor, eis que o aluno aqui presente, a redigir este projeto, sente-se imensamente despreparado para tal (f)ato. Talvez porque tenha vasculhado os anos de faculdade a procura de uma peça capaz de abarcar seu universo – sempre imenso – de questões. Talvez porque tenha adaptado inúmeros romances e desistido de todos eles. Talvez por já ter escrito algumas dezenas de sinopses geniais e sem nenhuma ação. Talvez porque nada lhe afete mais – neste momento – do que o próprio momento no qual torna-se irrefutável a criação de sua pequena obra de conclusão.

\\ esboço da apresentação do projeto

Um pedido, apenas

Eu quero ser música, mãe. Você entenderia? Você me entenderia? Se eu te falasse assim um dia, mãe, não quero mais ser filho quero ser melodia. Você me entenderia, mãe? Me entenderia, ainda assim? Eu toco esse piano imaginário eu te faço acreditar que em mim as coisas querem funcionar, mais uma vez.

sábado, 16 de abril de 2011

Análise das Máquinas > 02/06

CAPÍTULO 1
AS MÁQUINAS DESEJANTES
O corpo sem órgãos

A anti-produção <

O respirar das máquinas desejantes é insuportável ao corpo sem órgãos. É como se a ação primeira das máquinas fosse organizar o corpo. Por isso, o corpo sem órgãos oferece às máquinas desejantes um forte contraponto. A elas, ele oferece sua indiferença, a sua inarticulação, sua improdutividade.

Repulsão e máquina paranóica <<

Talvez seja esse o sentido do recalcamento dito originário: a repulsão que o corpo sem órgãos tem em relação às máquinas desejantes, o movimento de não responder às solicitações desejantes.

Assim, a máquina paranóica nasce justamente dessa reação repulsiva do corpo sem órgãos às máquinas desejantes (tidas como aparelho de perseguição). A máquina paranóica nasce na oposição ao processo de produção das máquinas desejantes. A máquina paranóica é portanto uma transformação das máquinas desejantes resultante da impossibilidade de o corpo sem órgãos suportar as máquinas.

Produção desejante e produção social: como é que a anti-produção se apropria das forças produtivas <<<

A produção social também gera seu corpo sem órgãos, seu improdutivo, um elemento de anti-produção ligado ao processo, um corpo pleno denominado como socius. Pode ser o corpo da terra, o corpo despótico ou o próprio capital. (Marx afirma que o capital não é o produto do trabalho, mas se revela como se fosse seu pressuposto natural e divino). O capital se constitui como uma superfície sobre a qual todos os agentes de produção são rebatidos, de modo que se apropria do sobreproduto e atribui a si próprio o conjunto e as partes do processo, que parecem emanar dele. Forças e agentes (de produção) parecem ser miraculados pelo capital.

No mesmo sentido, o socius se articula como corpo pleno no qual toda a produção é registrada e do qual toda a produção parece emanar. A sociedade constrói o seu próprio delírio. O capital é o corpo sem órgãos do ser capitalista. E é no capital que se engatam as máquinas e agentes de produção, de modo que seu funcionamento é miraculado por ele. Tudo enquanto quase-causa ­do capital. O uso do capital como corpo pleno para formar a superfície de inscrição ou de registro... um movimento objetivo aparente, um mundo perverso enfeitiçado fetichista, pertencem a todos os tipos de sociedade como constante da reprodução social.

Apropriação ou atração, e máquina miraculante <<<

Uma máquina de atração pode suceder uma máquina repulsiva. Ou seja, do conflito repulsivo entre máquinas desejantes e corpo sem órgãos, pode haver uma atração. Uma máquina de atração (máquina miraculante) depois da máquina repulsiva (máquina paranóica).

As duas coexistem, porque o corpo sem órgãos serve de superfície para o registro de qualquer processo de produção do desejo. O corpo sem órgãos como superfície encantada de inscrição ou de registro que se atribui a si próprio todas as forças produtivas e os órgãos de produção.

A segunda síntese: síntese disjuntiva ou produção de registro. Quer... quer. Genealogia esquizofrênica <<<<<

Quando as conexões produtivas passam das máquinas ao corpo sem órgãos (como do trabalho ao capital), elas são submetidas a uma lei que exprime uma distribuição em relação ao elemento não produtivo enquanto “pressuposto natural ou divino”. O “quer... quer” esquizofrênico transformar-se no “e depois”. A maneira como os órgãos estão engatados ao corpo sem órgãos deve ser tal que todas as sínteses disjuntivas entre os dois conduzam ao mesmo sobre a superfície deslizante.

A síntese disjuntiva de registro oculta, portanto, as sínteses conectivas de produção. Se chamamos libido ao conectivo da produção desejante, devemos dizer que uma parte dessa energia se transforma em energia de inscrição disjuntiva (Numen). Transformação energética. Freud acentua a importância dessas sínteses disjuntivas nos delírios gerais e nos de Schreber: “Tal divisão é característica das psicoses paranóicas. Estas dividem, enquanto que a histeria condensa. Ou antes, estas psicoses resolvem de novo, nos seus elementos, as condensações e as identificações realizadas na imaginação inconsciente”.

As disjunções são a forma da genealogia desejante; mas será esta genealogia edipiana, deverá esta genealogia se inscrever na triangulação de Édipo? Não será o Édipo uma exigência ou uma consequência da reprodução social, enquanto esta pretende domesticar uma matéria e uma forma genealógicas, que lhe escapa completamente?

A produção desejante forma um sistema linear-binário. O corpo pleno sem órgãos entra nesta série como um terceiro termo (produzido como anti-produção e em constante recusa a qualquer tentativa de triangulação que implique uma produção familiar). É sobre o corpo sem órgãos que o Numen se distribui e onde se estabelecem disjunções independentemente de qualquer projeção.

É certo que o esquizofrênico é um interpelado nos códigos vigentes. O esquizofrênico por vezes entra no jogo psicanalítico e o faz estourar por dentro (sim, é minha mãe, mas a minha mãe é precisamente a Virgem). O esquizo dispõe de modos muito próprios de referência, dispõe de um código de registro particular que não coincide com o código social ou que só coincide com ele para parodiá-lo. O código delirante ou desejante apresenta uma fluidez extraordinária. Dir-se-ia que o esquizofrênico passa de um código a outro, que baralha todos os códigos, num deslizar veloz, conforme as questões que lhe são postas, não dando nunca duas vezes seguidas a mesma explicação, não invocando nunca a mesma genealogia, não registrando nunca do mesmo modo o mesmo acontecimento.

É assim que os agentes de produção se colocam sobre o corpo de Schreber, se suspendem nele, tal como os raios do céu que ele atrai e que contêm milhares de pequenos espermatozóides. Raios, aves, vozes, nervos, estabelecem relações permutáveis de genealogia complexa com Deus, com as formas divididas de Deus. Mas é no corpo sem órgãos que tudo se passa e se registra como os piolhos na juba do leão.

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Diogo Liberano

Encontro Três

Livraria Prefácio
Diogo, Thaís, Andrêas, Laura, Adassa, Márcio, Virgínia e Daniel.

- o corpo sem órgãos
- o corpo pleno sem órgãos
- máquinas desejantes, dialéticas, esquizofrênicas, dialógicas…
- produção desejante/delirante
- não há mocinho nem vilão (o cso e as máquinas desejantes estão agindo a todo o momento – para ler o anti-édipo é preciso sair da esfera de causação)
- segunda síntese: síntese disjuntiva ou produção de registro
- o quarto ponto – ficção – nesse triângulo
- dia 30 de abril – 17h – 3. o sujeito e o gozo
- “algo assim, melhor do que eu”
- mãe, quero ser música
- hipoglicemia
- sistema digestivo e seus órgãos
- deus como o cso do clérigo
- estamos exemplificando tudo (começar talvez a se acostumar com abstrações)
        

sábado, 9 de abril de 2011

Análise das Máquinas > 01/06

CAPÍTULO 1
AS MÁQUINAS DESEJANTES

A produção desejante

O passeio do esquizo <

Como se preparar uma máquina infernal? Como situar personagens dentro de um espaço com o qual eles – máquinas desejantes (esquizofrênicas) – vão dialogar e se acoplar? O que é um espaço “infernal” para nós, máquinas produtoras?

Natureza e indústria. O processo <<

Quando a relação homem-natureza entra em operação, as esferas de produção, distribuição e consumo são produzidas. Tudo é produção. O próprio registro e o consumo são produções de um mesmo processo. Processo este no qual homem e natureza são vistos como uma só e mesma realidade: a de produtores e produtos. Processo que não deve nunca ser tomado como fim.

A produção como processo parte do desejo como seu princípio imanente. O homo natura é o esquizofrênico e a realidade essencial do homem e da natureza é essa, a da produção (que se executa tendo o desejo como princípio).

Máquina desejante, objetos parciais e fluxos: e... e... A primeira síntese: síntese conectiva ou produção de produção <<<

As máquinas desejantes são binárias (de regra binária ou regime associativo): uma máquina está sempre ligada a outra. É linear em todas as direções. O corte que se opera entre elas é uma extração de fluxos. É o desejo quem move o processo da produção desejante. Objetos parciais produzem fluxos e cortam fluxos. Qualquer objeto supõe a continuidade de um fluxo (ele – objeto – produz o fluxo?) e qualquer fluxo supõe a fragmentação de um objeto (que agirá como extrator do meu fluxo?).

Assim, essa primeira síntese, dada entre um objeto parcial e um fluxo, sugere outra forma: produto-produzir. Visto que o produzir já se encontra dentro do produto (por isso a produção desejante é produção de produção). Não podemos avaliar o objeto esquizofrênico fora do processo de produção (a produção está nele).

O esquizofrênico é o produtor universal. A sua não-terminação é um imperativo da produção (ele está sempre produzindo). Nele, sobrevive uma indiferenciação do produto e do produzir. Em resumo, a regra de produzir sempre o produzir, de inserir o produzir no produto, é a característica das máquinas desejantes ou da produção primária: produção de produção.

Produção do corpo sem órgãos <<<<

Objeto parcial. Fluxo. E um terceiro termo na série linear: enorme objeto não identificado. Porque num dado momento tudo pára, para depois recomeçar. Sendo assim seria melhor que nada funcionasse. Sair da roda dos nascimentos. Estarão as máquinas suficientemente avariadas para se entregarem e nos entregarem ao nada?

É que se os fluxos estão bem ligados e os objetos parciais são demasiadamente orgânicos, percebe-se que as máquinas desejantes fazem de nós um organismo, um corpo pleno. Mas dentro dessa produção o corpo sofre por estar organizado dessa forma ou mesmo por não ter outra organização possível.

O corpo pleno sem órgãos é o improdutivo, o estéril, o inengendrado, o inconsumível. Seu nome é instinto de morte. Porque o desejo também deseja a morte: o corpo pleno da morte traz ao motor do desejo a sua imobilidade. O desejo deseja também a vida, porque os órgãos da vida são a working machine do desejo. O corpo sem órgãos é produzido na síntese conectiva assim como a identidade do produzir e do produto. É um corpo sem imagem, perpetuamente re-injetado na produção. O corpo pleno sem órgãos (CSO) é anti-produção. Uma característica da síntese conectiva ou produtiva é ligar a produção à anti-produção, a um elemento de anti-produção.
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Diogo Liberano

motion


uma ficção na qual atores interpretam atores em processo de criação?

um documentário sobre o processo de criação de uma encenação teatral?

um documentário sobre o processo de criação de um longa metragem?

o que há meu de sincero perdido quando interpreto um personagem e perdido de mim quando tento ser quem eu sou mas estou sobre um palco?

sou eternamente ficção? sou ficção porque sou editável? meu fluxo é cortado, retalhado, refeito, estendido para além de mim, propagado, interrompido, eu sou editável. por isso sou ficção?

9_93

 piramide triangular

 piramidetria

pirâmide triangular e não triângulo edipiano. mãe, pai, eu + ficção. é mais vasto. nesse um vértice acrescentado eu me saio de mim, eu me encontro fora, no alto, eu me distancio da mãe do pai e de mim mesmo. eu ganho movimento e forma. ganho mais faces do que somente uma. eu me posso ver estetizado. com outro contraponto que não só papai e mamãe. eu vejo papai sob outra ótica. vejo mãe noutra também. a vida desendurece e tudo pode enfim ser o que não é. tudo virá jogo e possibilidade, vira movimento e ora a base é um triângulo ora a base é outro. ora eu sou eu numa face ora noutra. ora tudo está de ponta cabeça e o que nos sustenta é só um ponto. o ponto de partida. o ponto de equilíbrio. a ficção.

será?

na última aula de projeto a minha professora, Gabriela Lírio, disse algo como aprender a duvidar das suas intuições. ela acabou comigo. e por isso eu sou imensamente grato.

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Diogo Liberano

criação,

criação | s. f.
derivação fem. sing. de criar

criação
s. f.
1. Acto! ou efeito de criar.
2. Coisa criada.
3. Amamentação.
4. Período de lactação.
5. Propagação das espécies dos animais domésticos, e cuidados que exigem enquanto pequenos.
6. Aves domésticas; galinhas.
7. Conjunto da obra do Ser supremo (particularmente, o mundo visível).
8. Invento, obra, produção.
9. Fundação, formação.
10. Produção intelectual de grande mérito.
11. Interpretação de um papel dramático difícil.
12. Boa educação.
13. Trás-os-M. Época, tempo.

criar - Conjugar
v. tr.
1. Dar existência a.
2. Dar o ser a.
3. Gerar; produzir.
4. Originar.
5. Educar.
6. Inventar.
7. Fomentar; estabelecer; interpretar.
v. pron.
8. Nascer; produzir-se.
9. Crescer; passar à juventude.

O ATO DE CRIAÇÃO, por Gilles Deleuze

O autor de O Anti-Édipo, Imagem-Movimento e Imagem-tempo define a arte como ato de resistência à sociedade de controle em palestra a estudantes de cinema em 1987.
Eu gostaria também de formular algumas perguntas. Formulá-las a vocês e formulá-las a mim mesmo. Seria algo como: o que exatamente vocês fazem, vocês, homens do cinema? E eu, o que exatamente eu faço, quando faço ou espero fazer filosofia?
Poderia formular a pergunta de outra maneira: o que é ter uma idéia em cinema? Se fazemos ou queremos fazer cinema, o que significa ter uma idéia? O que acontece quando dizemos: “Ei, tive uma idéia”? Porque, de um lado, todo mundo sabe muito bem que ter uma idéia é algo que acontece raramente, é uma espécie de festa, pouco corrente. E depois, de outro lado, ter uma idéia não é algo genérico. Não temos uma idéia em geral. Uma idéia, assim como aquele que tem a idéia, já está destinada a este ou àquele domínio.
Trata-se ou de uma idéia em pintura, ou de uma idéia em romance, ou de uma idéia em filosofia, ou de uma idéia em ciência. E obviamente nunca é a mesma pessoa que pode ter todas elas. As idéias, devemos tratá-las como potenciais já empenhados nesse ou naquele modo de expressão, de sorte que eu não posso dizer que tenho uma idéia em geral. Em função das técnicas que conheço, posso ter uma idéia em tal ou tal domínio, uma idéia em cinema ou uma idéia em filosofia.
O que é ter uma idéia em alguma coisa?
Parto do princípio de que eu faço filosofia e vocês fazem cinema. Admitido isso, seria muito fácil dizer que a filosofia, estando pronta para refletir sobre qualquer coisa, por que não refletiria sobre o cinema? Um verdadeiro absurdo. A filosofia não é feita para refletir sobre qualquer coisa. Ao tratar a filosofia como uma capacidade de “refletir-sobre”, parece que lhe damos muito, mas na verdade lhe retiramos tudo. Isso porque ninguém precisa da filosofia para refletir. As únicas pessoas capazes de refletir efetivamente sobre o cinema são os cineastas, ou os críticos de cinema, ou então aqueles que gostam de cinema. Essas pessoas não precisam da filosofia para refletir sobre o cinema. A idéia de que os matemáticos precisariam da filosofia para refletir sobre a matemática é uma idéia cômica. Se a filosofia deve servir para refletir sobre algo, ela não teria nenhuma razão para existir. Se a filosofia existe, é porque ela tem seu próprio conteúdo.
Qual é o conteúdo da filosofia?
Muito simples: a filosofia é uma disciplina tão criativa, tão inventiva quanto qualquer outra disciplina, e ela consiste em criar ou inventar conceitos. E os conceitos não existem prontos e acabados numa espécie de céu em que aguardariam que uma filosofia os apanhasse. Os conceitos, é preciso fabricá-los. É claro que os conceitos não se fabricam assim, num piscar de olhos. Não nos dizemos, um belo dia: “Ei, vou inventar um conceito!”, assim como um pintor não se diz: “Ei, vou pintar um quadro!”, ou um cineasta: “Ei, vou fazer um filme!”.
É preciso que haja uma necessidade, tanto em filosofia quanto nas outras áreas, do contrário não há nada. Um criador não é um ser que trabalha pelo prazer. Um criador só faz aquilo de que tem absoluta necessidade. Essa necessidade – que é uma coisa bastante complexa, caso ela exista – faz com que um filósofo (aqui pelo menos eu sei do que ele se ocupa) se proponha a inventar, a criar conceitos, e não a ocupar-se em refletir, mesmo sobre o cinema.
Eu digo que faço filosofia, ou seja, que tento inventar conceitos. E vocês que fazem cinema, o que vocês fazem?
O que vocês inventam não são conceitos – isso não é de sua alçada –, mas blocos de movimento/ duração. Se fabricamos um bloco de movimento/duração, é possível que façamos cinema. Não se trata de invocar uma história ou de recusá-la. Tudo tem uma história. A filosofia também conta histórias. Histórias com conceitos. O cinema conta histórias com blocos de movimento/duração. A pintura inventa um tipo totalmente diverso de bloco. Não são nem blocos de conceitos, nem blocos de movimento/duração, mas blocos de linhas/cores. A música inventa um outro tipo de bloco, também todo peculiar. Ao lado de tudo isso, a ciência não é menos criadora. Eu não vejo tantas oposições entre as ciências e as artes.
Se pergunto a um erudito o que ele faz, também ele inventa. Ele não descobre – a descoberta existe, porém não é por meio dela que definimos uma atividade científica como tal –, mas cria como se fosse um artista. Um erudito, coisa bem simples, é alguém que inventa ou cria funções. E ele está sozinho nessa empreitada. Um erudito, na condição de erudito, nada tem a ver com conceitos. É justamente para isso – e felizmente – que existe a filosofia. Em compensação, existe uma coisa que só o erudito sabe fazer: inventar e criar funções. O que é uma função? Existe uma função sempre que há correspondência uniforme de pelo menos dois conjuntos. A noção de base da ciência – e não desde ontem, mas desde muito tempo – é a noção de conjunto. Um conjunto não tem nada a ver com um conceito. Sempre que você puser conjuntos em correlação uniforme, você obterá conjuntos e poderá dizer: “Eu faço ciência”.
Se uma pessoa qualquer pode falar com outra qualquer, se um cineasta pode falar com um homem de ciência, se um homem de ciência pode ter algo a dizer a um filósofo e vice-versa, é na medida e em função das atividades criativas de cada um. Não que haja espaço para falar da criação – a criação é antes algo bastante solitário –, mas é em nome de minha criação que tenho algo a dizer para alguém. Se eu alinhasse todas essas disciplinas que se definem pela sua atividade criadora, diria que há um limite que lhes é comum. O limite que é comum a todas essas séries de invenções, invenções de funções, invenções de blocos de duração/movimento, invenção de conceitos, é o espaço-tempo. Se todas as disciplinas se comunicam entre si, isso se dá no plano daquilo que nunca se destaca por si mesmo, mas que está como que entranhado em toda a disciplina criadora, a saber, a constituição dos espaços-tempos.
Em Robert Bresson [diretor francês, 1907], caso bastante conhecido, raramente existem espaços inteiros. São espaços que podemos chamar desconexos. Há, por exemplo, um canto, um canto de um quarto. Depois vemos um outro canto, ou então um pedaço da parede. Tudo ocorre como se o espaço bressoniano se apresentasse como uma série de pequenos fragmentos cuja conexão não está predeterminada. Existem grandes cineastas que empregam, ao contrário, espaços de conjunto.
Não digo que seja mais fácil manejar um espaço de conjunto. Mas o espaço de Bresson constitui um tipo de espaço particular. Sem dúvida, ele foi retomado mais tarde, serviu de modo bastante criativo para outros, que o renovaram. Mas Bresson foi um dos primeiros a construir o espaço com pequenos fragmentos desconexos, ou seja, pequenos fragmentos cuja conexão não é predeterminada. E eu diria o seguinte: no limite de todas as tentativas de criação, existem espaços-tempos. É só isso que existe. Os blocos de duração/movimento de Bresson tenderão a esse tipo de espaço, entre outros.
A pergunta então é essa: esses pequenos fragmentos de espaço visual cuja conexão não é dada previamente são conectados por meio de quê? Pela mão. Não se trata de teoria nem de filosofia. Não é um processo dedutivo. O que quero dizer é que o espaço de Bresson é a valorização cinematográfica da mão no seio da imagem. A junção de pequenos trechos de espaço bressoniano pelo fato mesmo de serem trechos, pedaços desconexos do espaço, pode ser exclusivamente uma junção manual. Daí a exaustão da mão em todo o seu cinema.
Desse modo, o bloco de extensão/movimento de Bresson recebe como característica própria desse criador, desse espaço, o papel da mão, que irrompe em seus limites. Somente a mão é capaz de operar efetivamente as conexões de uma parte a outra do espaço. E Bresson é sem dúvida o mais importante cineasta a ter reintroduzido no cinema os valores táteis. Não só porque ele sabe captar as mãos em imagens admiráveis. Se ele sabe captar admiravelmente as mãos em imagens é porque ele precisa delas. Um criador não é um ser que trabalha pelo prazer. Um criador só faz aquilo de que tem absoluta necessidade.
Mais uma vez, ter uma idéia em cinema não é a mesma coisa que ter uma idéia em outro assunto. Contudo há idéias em cinema que também poderiam valer em outras disciplinas, que poderiam ser excelentes em romances, por exemplo. Mas elas não teriam, absolutamente, os mesmos ares. Além disso, existem idéias no cinema que só podem ser cinematográficas. Não importa. Mesmo quando se trata de idéias em cinema que poderiam valer em romances, elas já estão empenhadas num processo cinematográfico que faz com que elas estejam predestinadas. Esse é um modo de formular uma pergunta que me interessa: o que faz com que um cineasta tenha vontade de adaptar, por exemplo, um romance? Parece-me evidente que é porque ele tem idéias em cinema que fazem eco àquilo que o romance apresenta como idéias em romance. E com isso se dão grandes encontros.
Não cogito do problema do cineasta que adapta um romance notoriamente medíocre. Ele pode precisar do romance medíocre, e isso não impede que o filme seja genial; seria interessante abordar essa questão. Mas proponho uma questão diferente: o que acontece quando o romance é um grande romance e revela-se essa afinidade pela qual alguém em cinema tem uma idéia que corresponde àquilo que era uma idéia em romance? Um dos casos mais belos é o de Akira Kurosawa [diretor japonês, 1910-1998]. Por que ele tem essa familiaridade com Shakespeare e Dostoiévski? Por que é preciso um japonês para entrar em familiaridade com esses autores?
Eu sugiro uma resposta que creio tocar um pouco à filosofia. Nos personagens de Dostoiévski, produz-se muitas vezes algo bastante curioso, que pode dizer respeito a um pequeno detalhe. Geralmente, eles são muito agitados. Um personagem sai de casa, desce até a rua e diz: “Tânia, a mulher que amo, me pede ajuda. Vou correndo, ela morrerá se eu não for”. Ele desce a escada e encontra um amigo, ou vê um cão atropelado, e esquece, esquece completamente que Tânia o espera, à beira da morte. Ele se põe a falar, cruza com outro camarada, vai até sua casa tomar chá e, de súbito, diz novamente: “Tânia me espera, é preciso que eu vá”.
O que significa tudo isso? Em Dostoiévski, os personagens são perpetuamente vítimas da urgência e, ao mesmo tempo em que eles são vítimas dessas urgências, que são questões de vida ou morte, eles sabem que há uma questão ainda mais urgente, embora não saibam qual. E é isso que os paralisa. Tudo se passa como se, na maior urgência – “É um incêndio, é preciso que eu vá” –, eles se dissessem: “Não, existe algo ainda mais urgente. Não moverei um dedo até saber do que se trata”. É O idiota [romance de Dostoiévski filmado por Kurosawa]. É a fórmula de O idiota: “Veja, há um problema mais profundo. Qual problema, não saberia dizer ao certo. Mas me deixe. Tudo pode arder... É preciso encontrar esse problema mais urgente”.
Isso Kurosawa não aprendeu de Dostoiévski. Todos os personagens de Kurosawa são assim. Eis um belo encontro. Se Kurosawa pode adaptar Dostoiévski, é pelo menos porque pode dizer: “Temos um assunto em comum, um problema em comum”. Os personagens de Kurosawa metem-se em situações impossíveis, mas atenção: há um problema mais urgente. E é preciso que eles saibam qual é esse problema.
“Viver” é talvez o filme de Kurosawa que vá mais longe nesse sentido. Mas todos os seus filmes vão nesse sentido. Os sete samurais, por exemplo: todo o espaço de Kurosawa depende dele, é necessariamente um espaço oval, castigado pela chuva. Em Os sete samurais, os personagens são pegos numa situação de urgência: eles aceitaram defender o vilarejo e do começo ao final do filme eles são afligidos por uma questão mais profunda, que será proferida no final, pelos chefes dos samurais, quando eles partem: “O que é um samurai? O que é um samurai, não em sentido genérico, mas naquela época?”. Alguém que não serve mais para nada.
Os senhores não precisam mais deles, e os camponeses logo saberão defender-se sozinhos. Durante todo o filme, em que pese a urgência da situação, os samurais são atormentados por essa questão, digna de O idiota: nós, samurais, o que somos nós?
Uma idéia em cinema é desse tipo tão logo se ache empenhada num processo cinematográfico. Então você poderá dizer: “tive uma idéia”, mesmo se você a toma emprestada de Dostoiévski.
Uma idéia é algo bem simples. Não é um conceito, não é filosofia. Mesmo que de toda idéia se possa tirar, talvez, um conceito. Penso em Vincente Minnelli [diretor norte-americano, 1902-1986], que tem uma idéia extraordinária sobre o sonho. Ela é bem simples, podemos verbalizá-la, e está empenhada num processo cinematográfico que é a obra de Minnelli.
A grande idéia de Minnelli sobre o sonho é que ele diz respeito sobretudo àqueles que não sonham. O sonho daqueles que sonham diz respeito àqueles que não sonham. Por que isso lhes diz respeito? Porque sempre que há o sonho do outro, há perigo. O sonho das pessoas é sempre um sonho devorador, que ameaça nos engolir. Que os outros sonhem é algo perigoso. O sonho é uma terrível vontade de potência. Cada um de nós é mais ou menos vítima do sonho dos outros. Mesmo quando se trata da jovem mais graciosa, ela é uma terrível devoradora, não por sua alma, mas por seus sonhos. Desconfiem do sonho do outro, porque se vocês forem apanhados no sonho do outro, estarão em maus lençóis.
Uma idéia cinematográfica é, por exemplo, a famosa dissociação entre o ver e o falar no cinema relativamente recente, quer seja – tomo os casos mais conhecidos Hans Juergen Syberberg [diretor alemão], os Straub [os diretores franceses Jean-Marie Straub e sua mulher Danièle Huillet], Marguerite Duras [escritora e diretora francesa, 1914-1997]. O que há de comum e por que é uma idéia propriamente cinematográfica fazer uma disjunção entre o visual e o sonoro? Por que isso não pode ser feito no teatro? Poder, pode, mas então, salvo se o teatro dispuser de meios, se dirá que ele a tomou de empréstimo ao cinema. O que não é necessariamente ruim, mas assegurar a disjunção entre ver e falar, entre o visual e o sonoro, é uma idéia tão cinematográfica que isso responderia à questão de saber em que consiste, por exemplo, uma idéia em cinema.
Uma voz fala de alguma coisa. Fala-se de alguma coisa. Ao mesmo tempo, nos fazem ver outra coisa. E enfim, aquilo de que nos falam está sob aquilo que nos fazem ver. Esse terceiro ponto é importantíssimo. Logo se vê que o teatro não teria acesso a tal expediente. O teatro poderia adotar as duas primeiras proposições: nos falam de alguma coisa e nos fazem ver outra. Mas que aquilo de que nos falam põe-se ao mesmo tempo sob aquilo que nos fazem ver – e isso é imprescindível, se não as duas primeiras operações não teriam nenhum sentido ou interesse – podemos dizê-lo de outro modo: a palavra se ergue no ar, ao mesmo tempo em que a terra que vemos afunda-se cada vez mais. Ou ainda: ao mesmo tempo que essa palavra se ergue no ar, aquilo de que ela nos falava afunda-se na terra.
O que é isso senão aquilo que somente o cinema pode fazer?
Não digo que ele o deva fazer, mas que o cinema o fez duas ou três vezes, que foram grandes cineastas que tiveram essa idéia. Eis uma idéia cinematográfica. Ela é prodigiosa porque assegura ao âmbito do cinema uma verdadeira transformação dos elementos, um ciclo que, de um golpe, capacita o cinema a fazer eco a uma física qualitativa dos elementos. Isso produz uma espécie de transformação, uma grande circulação de elementos no cinema a partir do ar, da terra, da água e do fogo. Em tudo o que eu digo, a história não é suprimida.
A história está sempre presente, mas o que nos espanta é o fato de a história ser tão interessante pela própria razão de ter tudo isso atrás dela e com ela. Nesse ciclo que acabo de definir tão rapidamente – a voz se ergue ao mesmo tempo que aquilo de que nos fala, voz afunda-se na terra – vocês reconheceram a maioria dos filmes dos Straub, o grande ciclo dos elementos dos Straub. O que vemos não é mais do que a terra deserta, mas essa terra deserta é como grávida daquilo que ela tem debaixo. E vocês me dirão: mas o que sabemos daquilo que ela tem debaixo? Ora, justamente aquilo de que nos fala a voz. Como se a terra se arqueasse em razão daquilo que a voz nos diz, e que vem tomar assento sob a terra em seu tempo e em seu lugar. E, se a voz nos fala de cadáveres, de toda a linhagem de cadáveres que vem tomar assento sob a terra, nesse momento, o menor frêmito de vento sobre a terra deserta, sobre o espaço vazio que vocês têm sob os olhos, o menor sulco nessa terra adquire todo o seu sentido.
Costumo dizer, em todo caso, que ter uma idéia não é da natureza da comunicação. É nesse ponto que gostaria de chegar. Tudo de que se fala é irredutível a toda comunicação. Mas não se aflijam. O que isso quer dizer? Num primeiro sentido, a comunicação é a transmissão e a propagação de uma informação.
Ora, o que é uma informação?
Não é nada complicado, todos o sabem: uma informação é um conjunto de palavras de ordem. Quando nos informam, nos dizem o que julgam que devemos crer. Em outros termos, informar é fazer circular uma palavra de ordem.
As declarações da polícia são chamadas, a justo título, comunicados. Elas nos comunicam informações, nos dizem aquilo que julgam que somos capazes ou devemos ou temos a obrigação de crer. Ou nem mesmo crer, mas fazer como se acreditássemos. Não nos pedem para crer, mas para nos comportar como se crêssemos. Isso é informação, isso é comunicação; à parte essas palavras de ordem e sua transmissão, não existe comunicação. O que equivale a dizer que a informação é exatamente o sistema do controle. Isso é evidente, e nos toca de perto hoje em dia.É verdade que entramos numa sociedade que podemos chamar sociedade de controle. Um pensador como Michel Foucault analisara dois tipo de sociedades bastante próximas de nós: as sociedades de soberania e as sociedades disciplinares. A passagem típica de uma sociedade de soberania para uma sociedade disciplinar coincidiu, segundo ele, com Napoleão. A sociedade disciplinar definia-se – as análises de Foucault, com todo mérito, por causa disso tornaram-se famosas – pela constituição de meios de enclausuramento: prisões, escolas, oficinas, hospitais. As sociedades disciplinares tinham necessidade disso.
Essa análise engendrou ambiguidades em certos leitores de Foucault, pois se pensou que essa era sua última palavra. Evidentemente que não. Foucault jamais pensou, e ele o disse com bastante clareza, que as sociedades disciplinares fossem eternas. Antes, ele pensava que entraríamos num tipo de sociedade nova. É claro que existe todo tipo de resquício de sociedades disciplinares, que persistirão por anos a fio, mas já sabemos que nossa vida se desenrola numa sociedade de outro tipo, que deveria chamar-se, segundo o termo proposto por William Burroughs – e Foucault tinha por ele uma viva admiração –, de sociedades de controle.
Entramos então em sociedades de controle que diferem em muito das sociedades de disciplina. Aqueles que velam por nosso bem não têm ou não terão mais necessidade de meios de enclausuramento. Hoje todos eles, as prisões, as escolas, os hospitais, são temas de discussão permanente. Não seria melhor estender o tratamento aos domicílios? Sim, esse é sem dúvida o futuro. As oficinas, as fábricas não comportam mais empregados. Não seria melhor regimes de empreitada e de trabalho a domicílio? Não existem outros meios de punir os infratores senão a prisão? As sociedades de controle não adotarão mais os meios de enclausuramento. Nem mesmo a escola.
Vale a pena investigar os temas que nascem, que se desenvolverão em 40 ou 50 anos e que nos explicam que o espantoso seria conjugar escola e profissão. Seria interessante saber qual será a identidade da escola e da profissão ao longo da formação permanente, que é o nosso futuro e que não implicará necessariamente o reagrupamento de alunos num local de clausura. Um controle não é uma disciplina. Com uma estrada não se enclausuram pessoas, mas, ao fazer estradas, multiplicam-se os meios de controle. Não digo que esse seja o único objetivo das estradas, mas as pessoas podem trafegar até o infinito e “livremente”, sem a mínima clausura, e serem perfeitamente controladas. Esse é o nosso futuro.Suponhamos que a informação seja isso, o sistema controlado das palavras de ordem que têm curso numa dada sociedade.
O que a obra de arte pode ter a ver com isso?
Não falemos de obra de arte, mas digamos ao menos que existe a contra-informação. Em países sob ditadura cerrada, em condições particularmente duras e cruéis, existe a contra-informação. No tempo de Hitler, os judeus que chegavam da Alemanha e que foram os primeiros a nos contar sobre os campos de extermínio faziam a contra-informação. O que é preciso constatar é que a contra-informação nunca foi suficiente para fazer o que quer que fosse. Nenhuma contra-informação foi capaz de perturbar Hitler. Salvo num caso. Que caso? Isso é de vital importância. A única resposta seria que a contra-informação só se torna eficaz quando ela é – e ela o é por natureza – ou se torna um ato de resistência. E o ato de resistência não é nem informação nem contra-informação. A contra-informação só é efetiva quando se torna um ato de resistência.
Qual a relação entre a obra de arte e a comunicação?
Nenhuma. A obra de arte não é um instrumento de comunicação. A obra de arte não tem nada a ver com a comunicação. A obra de arte não contém, estritamente, a mínima informação. Em compensação, existe uma afinidade fundamental entre a obra de arte e o ato de resistência. Isto sim. Ela tem algo a ver com a informação e a comunicação a título de ato de resistência.
Qual a relação misteriosa entre uma obra de arte e um ato de resistência, uma vez que os homens que resistem não têm nem o tempo nem talvez a cultura necessários para relacionar-se minimamente com a arte?
Não sei. André Malraux [escritor e diretor francês, 1901-1976] desenvolve um belo conceito filosófico: ele diz uma coisa bem simples sobre a arte, diz que ela é a única coisa que resiste à morte. Voltemos ao começo: o que fazemos quando fazemos filosofia? Inventamos conceitos. Eu considero esta a base de um belo conceito filosófico. Reflitamos... O que resiste à morte? Basta contemplar uma estatueta de 3.000 anos antes de Cristo para descobrir que a resposta de Malraux é uma boa resposta. Poderíamos dizer então, de forma mais tosca, do ponto de vista que nos interessa, que a arte é aquilo que resiste, mesmo que não seja a única coisa que resiste. Daí a relação tão estreita entre o ato de resistência e a obra de arte. Todo ato de resistência não é uma obra de arte, embora de uma certa maneira ela faça parte dele. Toda obra de arte não é um ato de resistência, e no entanto, de uma certa maneira, ela acaba sendo.
O que é ter uma idéia em cinema?
Tomem o caso, por exemplo, dos Straub quando operam essa disjunção entre voz sonora e imagem visual, que eles tomam da seguinte maneira: a voz se ergue, se ergue mais e mais, e aquilo de que ela nos fala baixa sob a terra nua, deserta, que a imagem visual estava nos mostrando, imagem visual que não tinha nenhuma relação direta com a imagem sonora. Ora, qual é esse ato de fala que se ergue no ar enquanto seu objeto afunda na terra? Resistência. Ato de resistência. E em toda a obra dos Straub, o ato de fala é um ato de resistência. De Moisés e Aarão ao último Kafka [América, romance filmado por Straub], passando por – não cito pela ordem – Não reconciliados ou Bach [Crônica de Anna Magdalena Bach]. O ato de fala de Bach é sua música, que é um ato de resistência, luta ativa contra a repartição do profano e do sagrado.Esse ato de resistência na música culmina num grito. Assim como há um grito no Woyzeck [peça do alemão Georg Büchner de 1836], há um grito em Bach: “Fora! Fora! Ide embora, não vos quero ver!”. Quando os Straub o põem em relevo, esse grito, o de Bach ou o da velha esquizofrênica de “Não Reconciliados”, tudo isso há de testemunhar um duplo aspecto. O ato de resistência possui duas faces. Ele é humano e é também um ato de arte. Somente o ato de resistência resiste à morte, seja sob a forma de uma obra de arte, seja sob a forma de uma luta entre os homens.
Qual a relação entre a luta entre os homens e a obra de arte?
A relação mais estreita possível e, para mim, a mais misteriosa. Exatamente o que Paul Klee queria dizer quando afirmava: “Pois bem, falta o povo”. O povo falta e ao mesmo tempo não falta. “Falta o povo” quer dizer que essa afinidade fundamental entre a obra de arte e um povo que ainda não existe nunca será clara. Não existe obra de arte que não faça apelo a um povo que ainda não existe.
Especial para a “Trafic”, tradução de José Marcos Macedo, publicado na Folha de S. Paulo de 27/06/1999.
Fonte: http://intermidias.blogspot.com/2007/07/o-ato-de-criao-por-gilles-deleuze.html

sexta-feira, 8 de abril de 2011

sobretudo

ou seja,
família + criação + metalinguagem + desejo + tragédia.


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Diogo Liberano

segunda-feira, 4 de abril de 2011

"Introdução à vida não-fascista"

Michel Foucault

Preface in: Gilles Deleuze e Félix Guattari. Anti-Oedipus: Capitalism and Schizophrenia, New York, Viking Press, 1977, pp. XI-XIV. Traduzido por wanderson flor do nascimento.

Durante os anos 1945-1965 (falo da Europa), existia uma certa forma correta de pensar, um certo estilo de discurso político, uma certa ética do intelectual. Era preciso ser unha e carne com Marx, não deixar seus sonhos vagabundearem muito longe de Freud e tratar os sistemas de signos - e significantes - com o maior respeito. Tais eram as três condições que tornavam aceitável essa singular ocupação que era a de escrever e de enunciar uma parte da verdade sobre si mesmo e sobre sua época.

Depois, vieram cinco anos breves, apaixonados, cinco anos de júbilo e de enigma. Às portas de nosso mundo, o Vietnã, o primeiro golpe em direção aos poderes constituídos. Mas aqui, no interior de nossos muros, o que exatamente se passa? Um amálgama de política revolucionária e anti-repressiva? Uma guerra levada por dois frontes - a exploração social e a repressão psíquica? Uma escalada da libido modulada pelo conflito de classes? É possível. De todo modo, é por esta interpretação familiar e dualista que se pretendeu explicar os acontecimentos destes anos. O sonho que, entre a Primeira Guerra Mundial e o acontecimento do fascismo, teve sob seus encantos as frações mais utopistas da Europa - a Alemanha de Wilhem Reich e a França dos surrealistas - retornou para abraçar a realidade mesma: Marx e Freud esclarecidos pela mesma incandescência.

Mas é isso mesmo o que se passou? Era uma retomada do projeto utópico dos anos trinta, desta vez, na escala da prática social? Ou, pelo contrário, houve um movimento para lutas políticas que não se conformavam mais ao modelo prescrito pela tradição marxista? Para uma experiência e uma tecnologia do desejo que não eram mais freudianas? Brandiram-se os velhos estandartes, mas o combate se deslocou e ganhou novas zonas.

O Anti-Édipo mostra, pra começar, a extensão do terreno ocupado. Porém, ele faz muito mais. Ele não se dissipa na difamação dos velhos ídolos, mesmo se divertindo muito com Freud. E, sobretudo, nos incita a ir mais longe.

Seria um erro ler o Anti-Édipo como a nova referência teórica (vocês sabem, essa famosa teoria que se nos costuma anunciar: essa que vai englobar tudo, essa que é absolutamente totalizante e tranquilizadora, essa, nos afirmam, “que tanto precisamos” nesta época de dispersão e de especialização, onde a “esperança” desapareceu). Não é preciso buscar uma “filosofia” nesta extraordinária profusão de novas noções e de conceitos-surpresa. O Anti-Édipo não é um Hegel pomposo. Penso que a melhor maneira de ler o Anti-Édipo é abordá-lo como uma “arte”, no sentido em que se fala de “arte erótica”, por exemplo. Apoiando-se sobre noções aparentemente abstratas de multiplicidades, de fluxo, de dispositivos e de acoplamentos, a análise da relação do desejo com a realidade e com a “máquina” capitalista contribui para responder a questões concretas. Questões que surgem menos do porque das coisas do que de seu como. Como introduzir o desejo no pensamento, no discurso, na ação? Como o desejo pode e deve desdobrar suas forças na esfera do político e se intensificar no processo de reversão da ordem estabelecida? Ars erotica, ars theoretica, ars politica.

Daí os três adversários aos quais o Anti-Édipo se encontra confrontado. Três adversários que não têm a mesma força, que representam graus diversos de ameaça, e que o livro combate por meios diferentes.

1) Os ascetas políticos, os militantes sombrios, os terroristas da teoria, esses que gostariam de preservar a ordem pura da política e do discurso político. Os burocratas da revolução e os funcionários da verdade.

2) Os lastimáveis técnicos do desejo - os psicanalistas e os semiólogos que registram cada signo e cada sintoma, e que gostariam de reduzir a organização múltipla do desejo à lei binária da estrutura e da falta.

3) Enfim, o inimigo maior, o adversário estratégico (embora a oposição do AntiÉdipo a seus outros inimigos constituam mais um engajamento político): o fascismo. E não somente o fascismo histórico de Hitler e de Mussolini - que tão bem souberam mobilizar e utilizar o desejo das massas -, mas o fascismo que está em nós todos, que martela nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz amar o poder, desejar esta coisa que nos domina e nos explora.

Eu diria que o Anti-Édipo (que seus autores me perdoem) é um livro de ética, o primeiro livro de ética que se escreveu na França depois de muito tempo (é talvez a razão pela qual seu sucesso não é limitado a um “leitorado” [“lectorat”] particular: ser anti-Édipo tornou-se um estilo de vida, um modo de pensar e de vida). Como fazer para não se tornar fascista mesmo quando (sobretudo quando) se acredita ser um militante revolucionário? Como liberar nosso discurso e nossos atos, nossos corações e nossos prazeres do fascismo? Como expulsar o fascismo que está incrustado em nosso comportamento? Os moralistas cristãos buscavam os traços da carne que estariam alojados nas redobras da alma. Deleuze e Guattari, por sua parte, espreitam os traços mais ínfimos do fascismo nos corpos.

Prestando uma modesta homenagem a São Francisco de Sales, se poderia dizer que o Anti-Édipo é uma Introdução à vida não fascista. (Francisco de Sales. Introduction à la vie devote (1064). Lyon: Pierre Rigaud, 1609)

Essa arte de viver contrária a todas as formas de fascismo, que sejam elas já instaladas ou próximas de ser, é acompanhada de um certo número de princípios essenciais, que eu resumiria da seguinte maneira se eu devesse fazer desse grande livro um manual ou um guia da vida cotidiana:

- Libere a ação política de toda forma de paranóia unitária e totalizante;

- Faça crescer a ação, o pensamento e os desejos por proliferação, justaposição e disjunção, mais do que por subdivisão e hierarquização piramidal;

- Libere-se das velhas categorias do Negativo (a lei, o limite, a castração, a falta, a lacuna), que o pensamento ocidental, por um longo tempo, sacralizou como forma do poder e modo de acesso à realidade. Prefira o que é positivo e múltiplo; a diferença à uniformidade; o fluxo às unidades; os agenciamentos móveis aos sistemas. Considere que o que é produtivo, não é sedentário, mas nômade;

- Não imagine que seja preciso ser triste para ser militante, mesmo que a coisa que se combata seja abominável. É a ligação do desejo com a realidade (e não sua fuga, nas formas da representação) que possui uma força revolucionária;

- Não utilize o pensamento para dar a uma prática política um valor de verdade; nem a ação política, para desacreditar um pensamento, como se ele fosse apenas pura especulação. Utilize a prática política como um intensificador do pensamento, e a análise como um multiplicador das formas e dos domínios de intervenção da ação política;

- Não exija da ação política que ela restabeleça os “direitos” do indivíduo, tal como a filosofia os definiu. O indivíduo é o produto do poder. O que é preciso é “desindividualizar” pela multiplicação, o deslocamento e os diversos agenciamentos. O grupo não deve ser o laço orgânico que une os indivíduos hierarquizados, mas um constante gerador de “desindividualização”;

- Não caia de amores pelo poder.

Poder-se-ia dizer que Deleuze e Guattari amam tão pouco o poder que eles buscaram neutralizar os efeitos de poder ligados a seu próprio discurso. Por isso os jogos e as armadilhas que se encontram espalhados em todo o livro, que fazem de sua tradução uma verdadeira façanha. Mas não são as armadilhas familiares da retórica, essas que buscam seduzir o leitor, sem que ele esteja consciente da manipulação, e que finda por assumir a causa dos autores contra sua vontade. As armadilhas do Anti-Édipo são as do humor: tanto os convites a se deixar expulsar, a despedir-se do texto batendo a porta. O livro faz pensar que é apenas o humor e o jogo aí onde, contudo, alguma coisa de essencial se passa, alguma coisa que é da maior seriedade: a perseguição a todas as formas de fascismo, desde aquelas, colossais, que nos rodeiam e nos esmagam até aquelas formas pequenas que fazem a amena tirania de nossas vidas cotidianas.

Sobre o ensino universitário público brasileiro

Sou aluno da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ – desde o primeiro semestre de 2006. Fui aprovado no vestibular realizado em 2005 e, desde então, faço graduação no curso de Artes Cênicas: Direção Teatral.

Este ano é de fato o ano da minha despedida, o ano em que concluo as disciplinas pendentes e posso, enfim, me formar. É estranho sentar aqui e agora para escrever essas palavras (que ainda não sei quais serão), mas ao mesmo tempo, é reconfortante; olhar para trás e ver-se agora, no que um dia foi o adiante. As coisas de fato mudaram, de fato houve uma formação e eu hoje sou outro, graças aos contatos e cruzamentos empreendidos.

Tenho uma gratidão profunda pelo ensino que tive. Tenho mesmo. Acontece que isso nunca me fez abaixar a cabeça para inúmeras faltas que eu como aluno considerei como faltas. Sou aluno de um curso que prevê a formação de diretores teatrais. Ou seja, mais do que um curso que forma pessoas tecnicamente capacitadas para dirigir uma peça de teatro, creio que o meu curso forma artistas, potenciais manipuladores e editores de agregados sensíveis.

É de fato estranho o que estou escrevendo. Mas é que queria deixar aqui registrado – neste espaço também retrato da minha vida - como com o passar dos anos o horizonte dos professores vai sendo atacado e perfurado por nossa ousadia. Se num ano anterior o horror foi um dado assunto ou invencione de algum aluno, neste ano de agora isso já é comum e eles – os professores – se apropriam do abuso tal como uma máquina capitalista o faz. Tudo vira produto – até mesmo a negação da noção de drama, da noção de atuação, das noções inúmeras que fazem da arte – na Academia – uma certeza e menos uma tentação.

Sim, na tentativa do diálogo, os limites são sempre mutáveis e o certo vira errado e o errado vira certo. Não digo isso por descontentamento. Digo isso porque me assusta e traz felicidade ver esse movimento todo de amadurecimento, porém, num caminho invertido. Amadurecer o ensino não me parece nada mais do que voltar a ser criança. E meus professores estão ficando velhos. Eu também estou, a propósito. Mas vejo neles uma aura de infância que talvez não tenha sido autorizada. Eles estão sendo sem saber aquilo que condenaram e tentaram evitar. Eles se esquecem talvez que a sua sensibilidade fala mais do que o gabarito escolar. Cada vez mais dentro desse curso se pode fazer tudo aquilo que a mãe lá no início dizia não poder. Cada vez mais eles batem palma para a rebeldia que certo dia o pai condenou à fogueira de um “ismo” qualquer.

E isso não é vergonha. Não é falta de coordenação. É a percepção e aceitação do inevitável. Ora, vais lutar contra o hibridismo que contamina a arte, seja ela qual manifestação for? Vais lutar contra a dramaturgia contemporânea que a todo custo tenta reinventar aquilo que está pronto – sim, talvez – mas que não nos toca mais? A arte é feita disso mesmo, desse intenso e ininterrupto processo de desautorizações. Hoje o protagonista é Hamlet, amanhã Rosencrantz e Guildestern o são. Quer dizer: vagamos em busca de novos pontos de vista para não cessar de contar as mesmas histórias.

Talvez tenha começado o texto querendo dar uma gritada. Manifestar como há absurdos imensos na Academia da qual faço parte. Mas não. Com calma e doçura eu soube ano passado que precisaria passar por certas provações para no adiante – hoje – poder respirar e saber: há temas que não me tocam, há procedimentos que já não me impressionam, há guerras para as quais meu suor é santo. Eu também estou em movimento e a cada passo meu – é como diz um poeta – o mundo inteiro sai do lugar.

Fonte: http://lendoarvoreseescrevendofilhos.blogspot.com/2011/03/sobre-o-ensino-universitario-publico.html