\\ PESQUISE NO BLOG

terça-feira, 29 de maio de 2012

“A peça não é boa”

Bom, a verdade é a seguinte: neste sábado, 02 de junho, às 20h, na sede da Cia. dos Atores, o Teatro Inominável traz novamente aos palcos cariocas o seu segundo espetáculo, estreado em 2010.

Em Vazio é o que não falta, Miranda, quatro atrizes e um diretor tentam, a todo o custo, encenar a obra Esperando Godot de Samuel Beckett, sem obter sucesso. O espetáculo nasceu de um longo processo no qual elenco e diretor de fato tentaram trazer à cena a obra de Beckett, porém, acabaram por reescrever os caminhos ditados por esta obra mundialmente conhecida.

Miranda cumpre temporada de sábado à segunda-feira, sempre às 20h, com entrada franca (basta chegar com trinta minutos de antecedência e retirar sua senha). Durante as três semanas, o Inominável também apresenta as MESAS TOMBADAS, uma série de conversas com convidados super especiais. Segue abaixo a programação completa:

Segunda-feira, 04 de junho, às 18h
TEATRO E METALINGUAGEM, com o diretor teatral ENRIQUE DIAZ
Mediação de Diogo Liberano

Domingo, 10 de junho, às 18h
TEATRO E PERFORMANCE, com a performer/teórica da performance ELEONORA FABIÃO
Mediação de Natássia Vello

Segunda-feira, 18 de junho, às 18h
TEATRO E ARTES PLÁSTICAS, com a artista plástica LIVIA FLORES
Mediação de Caroline Helena

Não deixem de prestigiar o espetáculo e, sobretudo, também não percam as conversas. A entrada é sempre gratuita, bastando chegar com antecedência de trinta minutos para retirada de senha.

\\

domingo, 27 de maio de 2012

“A peça está pronta! A peça está pronta! A peça está pronta”

Bom, de acordo com a inominável Adassa Martins, nosso espetáculo Vazio é o que não falta, Miranda realmente está de pé. Bom, há quem duvide. De qualquer forma, o início de nossa temporada está chegando. Já no sábado que vem, dia 02 de junho, às 20h na Cia. dos Atores (Rua Manoel Carneiro, 10-12, Lapa), o Inominável retorna aos palcos com o seu espetáculo xodó.

Em cena, as quatro atrizes da companhia (Adassa Martins, Caroline Helena, Flávia Naves e Natássia Vello) e o diretor e dramaturgo Diogo Liberano tentam a todo custo encenar a obra máxima de Samuel Beckett, Esperando Godot. A montagem estreou em 2010 e agora, a convite da Cia. dos Atores, retorna para a sua terceira temporada.

Muitas pessoas que já assistiram ao espetáculo, quando convidadas novamente, dizem o clássico “eu já assisti”. Bom, com toda sinceridade, MIRANDA não consegue ser a mesma por muito tempo. A pesquisa e o trabalho, desde 2010, modificou tudo o que tínhamos e aprofundou nossas buscas enquanto companhia. A dramaturgia é inédita e, naturalmente, o jogo cênico é também renovado. Vejam de novo!

Permaneceremos em cartaz de 02 a 18 de junho, aos sábados, domingos e segundas, sempre 20h. A entrada é franca, portanto, não deixem de vir. A lotação do espaço é de 60 lugares e - em breve - divulgaremos os três convidados que virão bater um papo antes de três apresentações.

\\

terça-feira, 15 de maio de 2012

“O que pode um corpo que sofre?”

Segue abaixo o vídeo teaser com a atriz Caroline Helena. A (re)estreia de Vazio é o que não falta, Miranda está confirmadíssima para o sábado, 02 de junho de 2012, às 20h na Cia. dos Atores. A entrada é franca, basta chegar com uma ligeira antecedência para retirar seu ingresso.

Fiquem ligados no blog do espetáculo (desesperandogodot.blogspot.com) e redes sociais. A qualquer momento, informaremos sobre as mesas de debate que acontecerão durante a temporada.

\\

domingo, 13 de maio de 2012

“Constructo”

Crítica da peça Sinfonia Sonho, de Diogo Liberano, do grupo Teatro Inominável
Autor: Humberto Giancristofaro

Foto: Divulgação.

Kevin (Márcio Machado), menino de 9 anos que acaba de se mudar com os pais e a irmã para uma casa nova, tem um desejo que expressa o motor da peça Sinfonia Sonho de Diogo Liberano: ele quer virar música. Da mesma forma, cada passo tanto da dramaturgia quanto da atuação indica um desejo de mesma natureza. A direção busca operar uma mudança de valores, por meio de uma revolução das sensações. Ou seja, fazer do corpo dramático um acontecimento teatral alinhado à percepção causada por uma sinfonia. A base desse experimento é guiada por Diogo Liberano de dentro do acontecimento. Sentado em cena com o roteiro em mãos, ele incorpora o narrador e presentifica o diretor, fazendo as vezes de um maestro para apontar o ritmo, a textura e a amplitude dos eventos e dos personagens.

O que de fato é interessante na mudança desejada, não é aonde ela quer chegar, mas a experiência de mudar. É nesse ínterim que a peça ocorre. Ela é uma peça enquanto acontecimento. A família de Kevin nunca completa a mudança de casa, as caixas estão fechadas e a iminência de voltar para a casa antiga ou ir para outro lugar paira no ar. Mesmo no núcleo familiar as mudanças não param de acontecer; a mãe está sendo transferida, o pai está largando a medicina, a filha está fazendo aniversário (a semana toda, ela brinca) e Kevin não para de tentar virar música. É uma família enquanto acontecimento. Assim, o acontecimento se torna um personagem nessa peça.

O espectro desse personagem-acontecimento é Tomas (Gunnar Borges), filho desaparecido do casal vizinho, que espreita a trama como um fantasma. Ele não está lá, pois, na narrativa, foi levado por balões de ar em seu aniversário. Porém, por meio de uma atuação muda e repleta de elementos da dança, Tomas vivifica as ideias dos outros personagens em meio às cenas. Seus passos são sempre claudicantes e, acima de tudo, escapantes – como é a qualidade inerente ao acontecimento. Na verdade, a força proveniente da expressão corporal de todos os atores é crucial para que esse personagem-acontecimento se sustente durante o espetáculo. Os corpos dos atores funcionam como usinas e cada um pode afetar e ser afetado pelos demais, todos são potências causais. As cenas são tocadas como notas musicais e exploraram a vitalidade desse afeto, misturando os efeitos provenientes do encontro dos corpos para fazer acontecer uma sinfonia.

A proposta de Kevin subverte a lógica de que um corpo nunca muda de natureza – ele apenas modifica suas qualidades segundo os outros corpos lhe afetem. Ele quer se reconstruir, transubstanciando seu corpo para tornar-se apenas afecção. Para virar música ele precisaria se desnaturar e se tornar acontecimento. Esse é o paradoxo defendido por sua mãe, Eva (Virginia Maria). Kevin insiste, porém, até encontrar uma saída. Eva é o signo da ordem no caos do acontecimento, ela é a parcela que puxa a peça para o eixo do esperado. No estado virtual, o acontecimento possui infinitos destinos, entre eles os que seguem os modelos antigos e projetam a espiral para o mesmo ponto de sua partida. Diante do absurdo vivido por Eva, durante o massacre ocorrido na escola que dirige, ela escolhe a saída comum do acontecimento, escolhe atualizar sua experiência de acordo com o senso comum, ao invés de compactuar com as possibilidades de liberdade que Kevin lhe aponta. Ela força tudo para o eixo, enquanto Kevin desmancha os gonzos. Por meio dessa antítese a ação de Kevin fica mais explícita. Contudo, ele preserva a esperança de que sua mãe faça parte da sua sinfonia.

O pai de Kevin, Franklin (Dan Marins), por sua vez é o esgotado no olho do furacão. A ordenação imposta por Eva, a princípio, é que produz o estado de mudança. Para ir em frente na vida e agarrar sua promoção, ela é quem movimenta a roda da fortuna para toda a família. Franklin, contudo, não tem seu gosto pela vida renovado com isso, ao contrário, não vislumbra possibilidade alguma para sua existência sob as novas condições que lhe vão sendo impostas. Ele tem que formar uma série exaustiva de tarefas para sustentar a nova casa, mas não pode fazê-lo por sua profissão, já que precisa cuidar das crianças; sua voz foi estancada pela propriedade provedora da mãe; sua imagem de pai fica dissipada, extenuando a sua potência de agir no espaço da casa e da família. Tudo isso fica impresso pelo corpo do ator, ele apresenta solos de movimentos entremeados às cenas, nos quais procura resgatar sua vitalidade, mas é sempre fadado a passos que o exaurem cada vez mais. Não são as possibilidades que acabam para Franklin, mas as potências de agir. Neste estado fissurado é que o corpo de Franklin pode vislumbrar a proposta fissurante de Kelvin. Esta é uma outra potência, fora do eixo. O estado esgotado dele é que o capacita a ouvir a inaudível sinfonia com a qual Kevin sonha se tornar.

A aproximação com o casal de vizinhos, Moira (Laura Nielsen) e Corley (Andrêas Gatto), é o que leva o desejo de Kelvin para sua máxima potência. A crise do casal, que se torna cada vez mais evidente, traz consigo o gatilho que Kelvin estava procurando para dar início à sua transmutação. Um casal com uma crise particular que traz uma disjunção alojada no ventre. Moira, que perdeu seu filho, sofre de uma gravidez psicológica. Mesmo sem compactuar com a mulher, Corley faz parte desse drama e não sabe como solucioná-lo. Vistos juntos, eles apresentam mais uma peça da teoria do desejo. Desejando a volta de seu filho desaparecido, eles desejam um conjunto de realidade, não um objeto. A ligação do desejo a um objeto é uma visão por demais econômica, em que a falta criaria o desejo. Nesta outra visão, o desejo é de um todo, de um cenário. Eles querem recriar a realidade do filho e distorcem a realidade para reavê-lo. Esta distorção forja um novo equilíbrio, sem o qual se corre o risco de mergulhar num nível de desadequação que pode chegar a ser fatal. Esse equilíbrio depende de um agenciamento entre as novas regras imaginadas e as regras anteriores, normalmente, num jogo de altos e baixos, defesas e negações Corley é a polaridade de negação dessa realidade, mas ainda está dentro deste mesmo jogo. Livrando-se do ponto de vista distorcido, Kevin obtém a ferramenta conceitual para virar música. Ele apreende que seu desejo não é de um objeto e sim de uma paisagem que deve ser construída. Para devir-música ele precisa agenciar todo o conjunto de sensações que o levem a isso, incluindo toda a sua família.

Sua irmã, Célia (Adassa Martins), também interpreta o desejo do irmão como o de um objeto, mas não projeta a falta como elemento desse desejo, pois está concentrada demais na certeza do seu êxito. Ela anseia pela hora em que ele, ao se tornar músico, será famoso. Ela traz para o irmão a calma de que o desejo é delirante e que nem por isso é implausível. Ou melhor, que justamente por isso é que é desejo. Desejar o cotidiano é simples programação, como faz Eva. Célia, com suas ideias de nunca mais crescer, por exemplo, apresenta o delírio desenfreado como a natureza do desejo. E é isso que deixa Kevin confortável para levar a cabo seu desejo.

Humberto Giancristofaro é escritor. Formado em Filosofia pela UFRJ e Université Paris VIII, atualmente mestrando em Filosofia na UFRJ, pesquisador das teorias francesas de Estética contemporânea.

---

Fonte: http://www.questaodecritica.com.br/2012/05/constructo/

“Nós precisamos sonhar com uma frágil sinfonia?”

Crítica da peça Sinfonia Sonho, do Teatro Inominável
Autor:
João Cícero

Foto: Thaís Grechi.

O espetáculo Sinfonia Sonho do Teatro Inominável, dirigido e escrito por Diogo Liberano, busca pensar o absurdo dos massacres infantis em espaços escolares, partindo de dois motes: a ficção presente no livro We Need to Talk About Kevin de Lionel Shriver e o caso real ocorrido na Escola Municipal Tasso da Silveira, em Realengo. Nesse sentido, a obra reflete sobre o espanto que nos atingiu ao assistirmos no Brasil um incidente semelhante ao de Columbine.

Tal acontecimento nos fez pensar sobre a brutalidade da globalização, visto que traduzimos/importamos um modelo de violência oriundo de outro contexto social à nossa realidade. Não sei se foi o primeiro fato de massacre infantil no Brasil. Mas certamente foi o primeiro de grande destaque na imprensa local, seguindo uma lógica explicativa própria aos fenômenos americanos, firmada na terminologia clínica internacional – o bullying.

O termo é a causa do absurdo. Ele busca justificar o injustificável. O Teatro inominável não aceita essa lógica causal – não quer dar nome ao horror. Constrói uma obra que, do início ao fim, luta contra esta simplificação incutida em nossa mentalidade. A peça opõe-se ao esquematismo dos meios de comunicação por conta de uma vontade poética, reivindicando a força simbólica e reflexiva da poesia.

Há três blocos sociais em Sinfonia Sonho: a família extraída do livro americano, a família (mítica) de vizinhos, inspirada no massacre em Realengo, e as duas repórteres que entram em cena, expondo o automatismo da imprensa diante do pânico grupal. Além disso, em cena há o jovem Liberano lendo as rubricas. Ele é o poeta que busca o estado de ação, participando pelo simples ato de ler breves passagens descritivas. Aí se observa o estranhamento do poeta diante do episódio trágico da polis. Sua fala-leitura se faz presente até ser invadida pelas repórteres que roubam as suas palavras. Esta participação pequena e oprimida do dramaturgo-diretor no decorrer da peça reivindica o estranhamento trágico e expõe uma critica à nossa sensibilidade calcificada e cínica pela logicidade midiática.

O Teatro Inominável leva a sério a si e aos outros. Esta afirmação é propositadamente polêmica por perceber tal companhia fora de um veto a seriedade que atinge o nosso teatro. Porém, o termo sério aí não se refere ao narcisismo da seriedade (o mais comumente praticado), em que o sujeito/coletivo se liga a determinados temas e quadros referenciais com a aspiração de trazer para si autoridade. Tal sentido de gravidade brota da percepção de um ponto de interseção existente entre mim e o outro. Ou seja, a existência de um nós que não deve ser interpretado como fascista, visto que a necessidade dessa pessoa do discurso se dá pela indispensável aproximação dos sujeitos no momento da invasão do horror, uma vez que esse acaba por produzir uma aproximação solidária. Esta solidariedade se forma por meio de um conjunto comum (este nós) no que ele tem de arriscado, isto é, a minha dor + a dor do outro = a nossa dor. Daí nasce o desejo de sinfonia. Não de uma sinfonia romântica de aspiração fascista, nem de uma sinfonia real, mas de uma frágil e dolorosa sinfonia, isto é, um sonho de sinfonia – frágil utopia (como o desejo de Kevin de se tornar música).

Liberano percebe que determinados temas sociais e políticos devem ser discutidos e postos em cena de modo responsável. Certamente, a existência do humor em Sinfonia Sonho não está se opondo à necessidade de se trabalhar o tema do massacre infantil de modo respeitoso. O humor visto neste espetáculo não é aquele reivindicado por uma inteligência irônica (‘superior’), mas é o humor crítico, dobrado sobre si mesmo, pensando acerca de sua medida diante do advento catastrófico. Nesta peça, o riso nervoso chega por conta da falta de lágrimas, ou juntando-se a elas. Pois não rimos apenas porque somos superiores aos animais, como muitos já disseram, rimos porque estamos automatizados para o riso, assim como as nossas máquinas expõem o automatismo da nossa inteligência. Logo, nem todo riso é crítico. Torna-se crítico aquele que percebe o automatismo de seu riso e de sua inteligência.

A associação à ideia de tragédia contemporânea em Sinfonia Sonho deve ser lida pela vontade do coletivo de tematizar um acontecimento real e político que nos atingiu. Este ultrapassou o limiar do ficcional e da loucura e alcançou uma realidade esquecida: Realengo. Explicar, racionalizar o fato seria uma atitude ingênua. Deve-se preservar um sentido poético e trágico diante desses acontecimentos. Assim sendo, não há moralismos. Há seguramente o sentido moral da tragédia – seu espanto diante da desmedida do homem. Conforme Liberano relatou, este ultrapassamento se inscreveu no próprio processo de feitura da peça, uma vez que o coletivo estava fazendo suas pesquisas, lendo o livro de Gilles Deleuze & Félix Guattari O antiédipo… e o de Shriver, quando se sentiram forçados a reagir ao massacre sucedido nesta escola municipal do Rio de Janeiro.

Para compor essa tragédia contemporânea, o coletivo buscou máscaras sociais atuais. Em Sinfonia Sonho, os três grupos sociais (as duas famílias e as repórteres), apesar de se relacionarem e de serem fortemente estilizados, possuem um tratamento diferenciado. A estilização se dá pelo fato de no próprio figurino e na composição das personagens se verificarem o caráter reconhecível dos tipos solicitados dentro de um imaginário comum.

As duas jornalistas interpretadas por Natássia Vello e por Flávia Naves optaram por criar o estereótipo de suas figuras através de uma violenta apresentação dos clichês da profissão. Tal lugar-comum se acentua na fala ao microfone, expondo o automatismo da imprensa perante o ocorrido. No entanto, o trabalho com o clichê não impede que as atrizes construam momentos de quebra. Ou seja, na figura protocolar e burocrática da jornalista há espaços para a interiorização. A primeira aparição de uma delas (Natássia Vello) se dá mediante a exposição desta tensão, pois a figura pública e protocolar da âncora de jornal reage de modo grave ao conteúdo trágico da notícia. Há uma sutil diferença entre as duas atrizes: Flávia explora mais o humor artificial da atividade jornalística, enquanto Natássia está mais contida e interiorizada em cena. Tal diferença se efetua sem a perda da exposição da violenta artificialidade dos meios de comunicação.

A família retirada do livro We Need to Talk About Kevin de Lionel Shriver aparece em cena como se fosse composta por personagens em quadrinhos. A composição da mãe, Eva (Virgínia Maria), é bem requintada e muito apoiada na observação sensível de personagens caricaturais de famílias americanas, presentes em programas de TV/filmes/séries/desenhos-animados que expõem a célula familiar de modo crítico. Seguindo o mesmo recurso de observação, o ator e a atriz que interpretam o filho, Kevin (Márcio Machado), e a filha, Célia (Adassa Martins), constroem suas caricaturas. Eles, entretanto, ultrapassam o caricatural construindo um jogo de interiorização e exteriorização. Tal procedimento parece ser o coração da peça, uma espécie de intermitência entre a máscara ficcional e a morte real. Isso fica bem visível em dois momentos: quando Kevin e Célia estão ensaiando uma peça infantil depois do massacre das crianças e no final da peça quando estão caídos no chão.

Foto: Thaís Grechi.

A família mítica que alude ao acontecido em Realengo possui outro tratamento formal. Esse não está baseado na caricatura de programas de TV. As roupinhas da criança morta, retiradas por Célia de dentro da barriga de Moira (a mãe pobre do menino Thomas), expressam a qualidade de tratamento dado a essas figuras. Elas são uma espécie de monstruosidade social, condenada ao extermínio. A mãe, Moira (Laura Nielsen), o pai, Corley (Andrêas Gatto) e o filho, Thomas (Gunnar Borges) são frágeis interiorizações, assim como o ventre ficcional daquela mãe. As roupinhas expressam o desamparo destas figuras. Entre os três, há uma espécie de doçura doída de um real perdido. O Realengo da peça é cru, seco, mas irreal. Porém sua irrealidade é como a loucura daquela mãe. É a ficção mentirosa. E não a ficção em sua plenitude crítica e criativa. Realengo é o resultado da violência da globalização em nós – que pôde construir um assassino, vestido de mulçumano pela identificação com a cultura periférica do islã, mas justificando o seu ato pelo bullying psicológico, próprio da terminologia clínica americana.

No espetáculo, há uma belíssima cena em que o jovem Thomas relata a sua morte. Em outra de igual qualidade assistimos ao pai diante do corpo do filho morto. Elas retratam bem o desamparo desta família. De certo modo, é como se as duas cenas fossem as roupas da barriga fictícia da Mãe, Moira (o destino). Sinfonia Sonho formula uma ficção crítica e criativa que discursa sobre o horror presente em nossas ficções doentias, nossas tragédias. Isto se dá porque Moira (a mãe-o destino) está presa a esse engano, ao entendimento doentio sobre a ficção. Precisamos de um antiédipo para acabar com a lógica viciada e enganosa que constrói as tragédias humanas. Mas enquanto elas existirem vai ser necessário refletir sobre elas por meio do estranhamento poético próprio à ficção em sua face criativa e crítica.

Devido ao fato de essas máscaras serem reconhecíveis e de os acontecimentos estarem frescos em nosso imaginário, a peça faz menção aos fatos utilizando-se de elipses. Sabe-se do massacre, das máscaras sociais, da angústia dos acontecimentos, tanto do de Realengo quanto dos das escolas americanas, que alimentaram a ficção de Shriver, porém estes episódios não são sublinhados na narrativa do espetáculo. Em cena, não há massacre. Ele está presumido na mente do público e nas falas das personagens que se referem ao acontecido. Assim, Sinfonia Sonho nos mostra o tema referido sustentando o sentido de tragédia solicitado pelo espetáculo, visto que assistimos à peça com o libreto do ‘mito’ dos massacres em nossa memória.

Apesar da diferença entre os blocos, Sinfonia Sonho edifica um sentido de todo por meio da centralização em torno do tema, pela ocupação do espaço, e, principalmente, muito ancorado às direções de movimento (Helena Cantidio) e música (Philippe Baptiste). A totalidade dentro desse espetáculo se apresenta na forma de dobras, isto é, a peça se liga por dobras elípticas e não por ser um todo esférico sem rugas. Mas certamente há nela essa vontade totalizante própria à tragédia. A tarefa da direção de movimento deve ser entendida como uma tinta que une os desenhos. Ela faz com que essas máscaras e composições flutuem e se dobrem dentro desta ‘sinfonia’. Sem esse trabalho e sem a música, o espetáculo não alcançaria o seu desejo de ser uma tragédia contemporânea. Pois não há tragédia sem música e sem coreografia. Certamente, a qualidade das direções deve ser valorizada pelo grande desafio proposto pelo grupo e pelo resultado atingido.

Porém, a meu ver, a direção de movimento se excede com suas manchas de tinta em determinados momentos, fazendo com que o trabalho de corpo caia no risco da abstração: o vago. Às vezes, Márcio Machado se excede gestualmente, correndo o risco de apresentar em seu trabalho um exibicionismo corporal desnecessário. Mas a alta qualidade de sua pesquisa de ator não se perde. Já a gestualidade abstrata no corpo de Adassa Martins nunca cai nesse risco, seu corpo treme, desgoverna-se, mas não vagueia sobre si mesmo, nem perde o foco de contracenação ou de sua ocupação espacial. Laura Nielsen, Andrêas Gatto, Virgínia Maria, Natássia Vello e Flávia Naves atendem com precisão ao que lhes é solicitado, sem correrem o risco de se perderem sobre a partitura corporal. Gunnar Borges constrói momentos abstratos cheios de lirismo, repletos de atenção ao que está sendo trabalhado na cena. No início da peça, seu corpo parece flutuar dentro de um ventre materno, e, ao fim do espetáculo, flutua nas nuvens sendo dilacerado por um balão. Parece haver um elo entre o jovem morto dessa família e o pai pacífico da outra, vestido de branco. Entretanto, no trabalho de Dan Marins (Frank – o pai de Kevin e Célia), a vaguidão da expressão corporal fica mais acentuada. Sua diferenciação daquele ciclo familiar está muito apoiada numa execução de gestos, que, em alguns momentos, apresentam o esqueleto da partitura corporal, como se o ator estivesse dando atenção à sua ação física mais do que a contracenação com os outros atores do espetáculo.

É interessante quando a pesquisa corporal destrói o que determinados homens de teatro chamaram e chamam de psicologismo. Contudo, a execução acentuada de partituras, reconhecíveis em espetáculos de dança contemporânea, pode, igualmente, cair numa reificação de um mero fisicalismo. Por isso, gosto especialmente da coragem do coletivo de pôr em cena um gesto de tapa na cara melodramático (o de Moira em Corley), encarando toda a pieguice e anacronismo do ato. A execução desse gesto junto ao flutuar do menino obriga o público a perceber a justaposição dos procedimentos. Faz-se assim uma dobra.

Foto: Divulgação.

Em Sinfonia Sonho, a composição do espaço (Leandro Ribeiro) é crua e interessante. Ela me remeteu, sutilmente, à imagem de uma sala de aula. Essas famílias fictícias e o dramaturgo-diretor são os ‘alunos’ dessa escola sem uma figura de poder (o professor/ o Estado). Penso que essa ausência é crítica, pois o Estado abandonou as escolas, deixando o professor sofrer as consequências da revolta contra o poder. Sem poder algum nas mãos o professor virou o Judas dessa revolta social. Eis outra peça, outro tema para uma grande tragédia. Junto ao público estão as duas jornalistas. Na plateia, elas ratificam o nosso automatismo de receptores/consumidores midiáticos diante desse espetáculo atroz.

Então… Precisamos sonhar com uma frágil sinfonia? Se for possível sonhar sem o pesadelo do bicho-papão, sim.

Digressão final:

Fico feliz que o espetáculo tenha surgido numa universidade pública brasileira – UFRJ. De algum modo, há um retorno ao país, em forma de reflexão poética, sobre o absurdo de Realengo.

Na peça, há as famílias, a imprensa, os alunos, o diretor-dramaturgo (representando os artistas que trabalham com arte). Há, entretanto, uma ausência: a figura do professor, esquecido em nossa sociedade. Por isso, o meu agradecimento aos professores que orientaram essa peça de formatura. Sem eles, não há esperança para se construir uma arte reflexiva neste país. O fato de se fazer menção a essa ausência não se configura numa observação negativa à peça. Apenas é a exposição de uma constatação: há um veto estético diante da figura do professor. O empobrecimento dessa figura é tão grande em nossa cultura, que é mais fácil imaginarmos uma tragédia baseada em figuras marginais do que na imagem do professor.

Uma reflexão:

Haverá um Eurípides que terá coragem de trazer o professor para o centro de uma tragédia? Ou o professor continuará rebaixado pela violência das comédias cotidianas?

Uma dedicatória:

Sem o afeto que eu tenho por Marina Vianna (atriz generosa e professora de teatro) essa crítica não existiria. Foi ela quem me apresentou o Teatro Inominável, e me ensinou a apreciar a coragem desse coletivo.

---

Fonte: http://www.questaodecritica.com.br/2012/04/nos-precisamos-sonhar-com-uma-fragil-sinfonia/

“‘Sinfonia Sonho’ é ousada ao evidenciar o horror cotidiano”

Opinião por Thais D’Castro
Jornalista, Atriz e Fotógrafa,
Mestre em Estudos de Cultura Contemporânea

Discorrer sobre a peça teatral “Sinfonia Sonho” apresentada pelo grupo “Teatro Inominável”, requer comentar não somente os atores em cena e a direção evidenciada no produto final, mas também o texto e dramaturgia propostos. Especialmente quando temos a grata surpresa em descobrir que a autoria da peça é também do diretor em questão, Diogo Liberano, inicialmente propondo o material como projeto de conclusão de curso na Faculdade de Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

A peça retrata as tentativas (frustradas) de duas famílias vizinhas que buscam equilibrar suas vidas diante das dificuldades impostas pelo dia a dia. Uma - composta pelo pai Franklin e mãe Eva, com seus dois filhos Célia e Kevin, respectivamente com sete e nove anos, tenta se adaptar à nova cidade onde a mãe foi promovida à direção de uma grande escola. A outra – formada por Corley e Moira, precisa lidar com a morte do filho Tomas e a gravidez psicológica de Moira diante da tragédia.

Vizinhos por ocasião, a trama desenvolvida escancara com uma pitada bem “teatresca” o caos e desequilíbrio que a realidade pode representar na vida do ser humano. Com holofotes em cima de cada um, ninguém pareceria muito normal mesmo. Um ano após o Massacre do Realengo, em que 12 crianças foram mortas dentro de uma escola no Rio de Janeiro, o fato aparece como argumento perfeito ao grupo para evidenciar como mundos real e virtual caminham mais próximos do que imaginamos.

Em uma palavra, a peça imprimiu ousadia. Ousadia em desenvolver uma partitura corporal tão elaborada e carregada de simbolismos. Ousadia em trabalharem a simplicidade no espaço, fazendo pouco uso de objetos cênicos, se certificando, contudo, de que nenhum vazio fosse sobressalente apesar de apenas sete cadeiras em cena com os atores sobre um piso colado no chão (todos ao mesmo tempo e nada mais). Ousadia em colocar o diretor-narrador no palco - e tirá-lo. Ousadia em carregar um texto de crítica e sensibilidade, sem com isso parecer demagogo ou superficial.

A qualidade do drama imposto pelo casal de crianças, seja pela generosidade do texto ou pela atuação primorosa de Adassa Martins (Célia) e Márcio Machado (Kevin) comovem a plateia com sua maturidade, sem com isso descaracterizar a infância ali retratada. Uma peça que despeja dúvidas revestidas de ansiedade e angústia, as quais ainda quando adultos, não estarão necessariamente solucionadas. Talvez o diretor Diogo Liberano esteja correto ao dizer que “teatro é crueldade e não solução”.

Em tempo, o personagem do pai Franklin, vivido pelo ator Dan Marins, apesar de notável condicionamento físico, me deixou na dúvida sobre o que seria um pedido da direção para que o pai fosse um tanto inerte ao drama, dado o contexto do personagem que acabara de perder seu pai com câncer, ou se por outro lado, falta de entrega emocional do ator ao personagem. Seja por um motivo ou pelo outro, pessoalmente tive vontade de ver a paixão daquele pai por seus filhos interpretada com um pouco mais de emoção e presença em alguns momentos.

Por último, mas não menos importante, gostei da decisão em “sujar” a cena com a presença das apresentadoras-repórteres interpretadas pelas atrizes Natássia Vello e Flávia Naves. Nelas, a imagem do jornalista que aparece sutilmente e traz pra si o direito de narrador da realidade, muitas vezes sem tomar qualquer cuidado para não ser invasivo na vida do outro. Jornalistas como tantos que confundem informação de interesse público com informação privada. O retrato da comunicação ali personificado incomoda apesar de parecerem imperceptíveis, tal qual acontece na realidade. Um “efeito urubu em vigília” que se mantém a postos para certificar de que todos os detalhes sejam narrados, até mesmo os mais desnecessários.

Sinfonia Sonho foi apresentada no Festival de Teatro de Curitiba e está em breve temporada no Rio de Janeiro, no Espaço Cultural Sérgio Porto, na Rua do Humaitá, num.163. Sexta (20) e sábado (21), às 21h e domingo (22), às 20h. Ingressos a R$ 20,00 (Inteira) e R$ 10,00 (Meia-entrada para estudantes, idosos, deficientes físicos, professores da rede pública de ensino e menores de 21 anos, devidamente identificados). Classificação indicativa – 16 anos.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

“Eu não me sinto feliz”

De fato estamos ensaiando Vazio é o que não falta, Miranda. Mas, convenhamos, não é para tanto. Neste vídeo, a atriz Flávia Naves expõe um pouco do seu descontentamento com o nosso processo. Paciência, Miranda chega aos palcos no dia 02 de junho, permanecendo na Cia. dos Atores até 18 de junho, de sábado à segunda-feira, sempre às 20h.

Em breve, informações completas. Estamos planejando um ciclo com debates com convidados, sempre antes das apresentações que acontecem às segundas. Fiquem ligados aqui no blog ou em qualquer outra rede social do Inominável.

\\

terça-feira, 8 de maio de 2012

Após SINFONIA SONHO, Inominável retorna aos palcos com MIRANDA

Após a temporada de estreia de Sinfonia Sonho, novo espetáculo do Teatro Inominável, o segundo trabalho da companhia retorna aos palcos. Vazio é o que não falta, Miranda (2010) apresenta as quatro atrizes da companhia (Adassa Martins + Caroline Helena + Flávia Naves + Natássia Vello) e o dramaturgo-diretor (Diogo Liberano) tentando encenar a peça Esperando Godot de Samuel Beckett.

miranda teaser

O espetáculo estreou em 2010 e retorna agora em sua terceira temporada, integrando a programação anual da Cia. dos Atores, que acontece na Lapa, Rio de Janeiro. De 02 a 18 de junho, de sábado à segunda-feira, sempre às 20h, Miranda promete chegar com tudo (independente do que isso possa significar).

Fiquem ligados no blog do espetáculo: desesperandogodot.blogspot.com

\\

“A gênese do contraditório: viewpoints e composições”

O início de nossos trabalhos em sala de ensaio começou com um jogo quebra-cabeça. Lancei aos atores o seguinte desafio: eles teriam quantos ensaios fossem precisos para montar – juntos – um quebra-cabeça por eles desconhecido. A cada ensaio eu destinaria duas horas para a tarefa que, se não fosse atingida, seria interrompida para ser recomeçada – do zero – no encontro seguinte. Eles cumpriram o jogo em apenas dois ensaios, quase conseguindo cumprir já no primeiro. Para mim, propor o jogo do quebra-cabeça (do quadro O Grito de Edvard Munch) foi uma forma de vê-los em jogo de maneira coletiva. De certa forma, aquilo ali era um sinopse muito curta de nosso espetáculo em termos de negociação, escuta, proposição e embate.

Conforme previsto no projeto desta montagem, a principal ferramenta criacional do espetáculo seria o uso de viewpoints e composições, ferramentas propostas por Anne Bogart e Tina Landau no livro The Viewpoints Book – A Pratical Guide to Viewpoints and Composition. Desde 2008, quando entrei pela primeira vez em contato com estas técnicas, percebi o quanto elas tinham validade por colocar justamente o corpo do ator em primeiro lugar. Como afirmam as autoras, tais técnicas configuram certa filosofia do movimento, por meio de práticas não-hierárquicas e colaborativas por natureza. Para mim, trabalhar com viewpoints e composições foi uma maneira de dotar os atores de um senso muito aguda da expressividade de seus corpos, consciência sem a qual não seria possível realizar um projeto que visava justamente uma ação criativa que não fosse extremamente dependente de uma supervisão constante do diretor.

Mas o uso dessas técnicas veio, desde sempre, para instrumentalizar o jogo com a dramaturgia. Como dito, todo o trabalho em sala de ensaio começou a partir do contato com a descrição das personagens e sinopse geral do espetáculo. Cada ator, antes de receber as primeiras cenas escritas, realizou a criação de no mínimo quatro composições individuais (da sua personagem) e outras em relação com uma ou outra personagem. Tais composições eram criadas fora da sala de ensaio a apresentadas num ensaio coletivo. Toda composição era fruto de algum pedaço da descrição das personagens e da sinopse. Assim, por meio da produção de tais composições, os atores foram se aproximando da personagem e desdobrando-as em possibilidades físicas e psicológicas. Escrever a dramaturgia após essa vivência foi extremamente interessante, pois já se sabia nitidamente como cada ator via sua personagem, como cada ator expressava as questões de sua personagem.

Por composição entendo a criação de uma pequena apresentação – uma composição – que mescla ingredientes que foram previamente colocados numa lista. Nessa lista, criada por mim, sempre opto por colocar ingredientes que de imediato pareçam não combinar. Isso gera ao ator um esforço para costurar as partes e encontrar novas lógicas para a produção do sentido e de sua fisicalidade. Assim, por exemplo, para o primeiro ensaio eu pedi por email a seguinte composição para cada ator, registrada no relatório de nosso primeiro ensaio, 1 \\ [1]:

COMPOSIÇÕES 01
> tema específico
> é um ponto de vista da sua personagem
> duração máxima de cinco minutos
> referências: as suas três postagens (dos meses de janeiro, fevereiro e março de 2008)

Para cada ator eu dava um tema específico (um exemplo dado a personagem Eva: Acabei de ser nomeada diretora da Escola Municipal Ensino Fundamental) e como referência-estímulo a criação, três postagens do blog Lendo Árvores e Escrevendo Filhos, previamente sorteadas de maneira aleatória. Assim, pensando esse tema da composição, somado a exigência de se portar como personagem (durante no máximo cinco minutos), o ator ainda precisava se relacionar com postagens variadas que eu havia escrito anos antes no meu blog. O encontro desses lugares, a princípio, extremamente contrastantes, nos rendeu momentos genuínos de descoberta da dramaturgia. Tenha a sensação de que nós descobríamos as personagens em situações as mais variadas, por conta desses ingredientes pouco intencionados. Para além disso, foi pedido a cada ator que investisse no trabalho descritivo de suas composições criadas, postando em nosso blog um relato de cada criação realizada. Abaixo, cito a postagem Kevin – Composição 4: Quando eu decidi virar música, as coisas lá em casa meio que deram problema [2], escrita pelo ator Márcio Machado:

Como na composição 3, apresenta seu quarto, só que desta vez à Célia e quer que ela veja o que ele diz e não o que ele aponta. A intenção é tirar Célia da tristeza, do ambiente pesado de sua casa. Entra com Célia de olhos fechados. "Você só vai poder abrir os olhos quando eu... Desculpa... Você só vai poder abrir o olho quando eu mandar. Esse aqui, esse aqui não é o meu quarto. Esse aqui é o salão principal do casarão. Agora pode abrir." Célia abre o olho, Kevin sorri pra ela, satisfeito por lhe apresentar um novo mundo. Vai até a porta, exatamente como fez na composição anterior. "Isso aqui não é a porta do meu quarto, esse aqui é um portal..." (olha pra ela, dividindo um segredo) "que barra o tempo". Vai pro centro do quarto. "Quando a gente tá aqui, o tempo é completamente diferente. Ih, nem computador tem! Aqui é o chão do salão. Ele é todo coberto por tapetes enormes, um por cima do outro, e muito compridos, que vão até a sacada central" (aponta a janela). "Lá, no finalzinho da tarde, o pai e a mãe ficam acenando pros vizinhos e admiradores." Leva Célia até a janela. "Aqui o pai é um médico famoso, o avô ainda é vivo e a mãe faz discursos lindos, sem nem precisar tomar remédio pra ficar calma. Quando tem festa aqui, o salão fica cheio de gente dançando a noite inteira, a mãe faz um discurso e todo mundo aplaude. A gente fica sentado aqui"... (coloca duas cadeiras no centro do quarto) "vendo os convidados dançando. É chato, mas as pessoas querem falar com a gente, tirar foto...". Dá um tempo enorme, vai se afundando na cadeira, se lembra dos seus pais e da situação que sua família vive agora. Pergunta: "O pai tava chorando?" Célia responde positivamente com a cabeça. "E a mãe?" Célia responde: "Tá esquisita!" Kevin: "Você acha que a culpa é minha?" Célia: "Não..." Kevin, sorrindo: "Eu também não." E num pulo, se coloca em posição de valsa: "Célia, já é meia-noite! A dança dos irmãos!" Pede pra alguém imaginário: "Cristina, música!”.

Os primeiros ensaios foram todos voltados para a criação e apresentação destas composições, mas também para treinamento coletivo dos atores, numa busca minha por certa “liga” entre eles, a chamada “negociação invisível” que intencionei no projeto. Dizia a eles que existia entre eles uma negociação que nós, espectadores, não detínhamos, mas que a nós se traduzia sensivelmente como alguma qualidade, como escuta, como intimidade entre eles. Mas para conseguir traduzir esse “bem-estar” em cena, era preciso negociar o tempo inteiro, num jogo constante que não prevê descanso nem ausência. Para encerrar os primeiros doze ensaios (ainda sem dramaturgia escrita), propûs que o elenco fizesse uma grande composição coletiva, unindo pedaços de tudo o que havia sido criado. Postei em nosso blog o ROTEIRO GERAL PARA COMPOSIÇÃO A SER APRESENTADA SEXTA-FEIRA (09 DE SETEMBRO) ÀS 21h NA SALA VIANINHA [3]:

01. CÉLIA 04 + KEVIN 01
02. KEVIN 04
03. FRANKLIN 03 + EVA 03
04. MOIRA 03 + CORLEY 03
05. EVA 04 + FRANKLIN 04
06. CÉLIA 03 + CORLEY 04
07. MOIRA 04
08. KEVIN 03
09. DISCURSOS VERBAIS (todos) ARTICULADOS
[...]

Esta composição deve começar com os seis sentados nas cadeiras, como no jogo CINTO DE SEGURANÇA. A combinação de duas composições formatará uma nova, resultante da soma das duas individuais. É preciso estar atento ao tempo e realizar escolhas, efetuar cortes e intencionar as durações. Não quer dizer colocar tudo. Quer dizer refletir e optar por escolhas que expressem essa sequência de acontecimentos, de estados, de ânimos e ritmos.

A duração mínima é de 20 minutos. A duração máxima é de 40 minutos.

Vocês tem os ensaios 09 \\ (quarta, 20h/22h, colégio andrews) e 10 \\ (quinta, 20h/22h, colégio andrews) para trabalharem juntos. Eu não estarei presente em nenhum destes. Nos vemos apenas no ensaio 11 \\ (sexta, 20h/22h, UFRJ – sala vianinha).

Neste ensaio (11 \\), apresentaremos a composição a orientadora Eleonora Fabião.

A seguir, destaco trechos do relatório ensaio 11 \\ [4], no qual a composição acima foi apresentada e no qual, de maneira irrevogável, a peça se mostrou presente, mas ainda carente de lapidação:

09 de setembro, UFRJ – Sala Vianinha, 20h30/22h.

Thaís, Dan, Virgínia, Laura, Andrêas, Marcio, Adassa, Diogo e Eleonora Fabião

os atores apresentaram a composição geral que havia sido solicitada ensaios atrás. tanto eu como eleonora estávamos vendo aquilo ali pela primeira vez. eu sabia das composições, mas não sabia da costura, da montagem que os meninos fizeram.

hoje escrevendo esse relatório, tento visualizar nessa composição algum resquício da cena que estamos erguendo. pontuarei assim alguns lugares que se mostraram interessantes e potentes ao desbravar.

CONSTELAÇÃO > a cena se esparrama pelo espaço, trabalha com pontos, a dramaturgia logo assim pode também ser pensada como pontos nodais que se ligam e formam imagens, tudo quebrado;

ITALIANO > o senso comum, a tipologia espacial para igualar os lugares e espelhar o público, não é bem isso, mas pode-se pensar o que fazer com esse espaço. se quebra? se ultrapassa? se atravessa?

CINTO DE SEGURANÇA > é sem dúvida alguma o eixo do espetáculo, o jogo-centro do qual tudo parte. cria um estado, uma atenção, uma tensão e relação entre os atores que vale o todo que vier depois.

CRIANÇAS > há duas criações distintas. uma feita por márcio (kevin) e outra por adassa (célia). é preciso descobrir como as duas se equalizam. por um lado um jogo com mimesis, uma tentativa de reproduzir o que é ser criança. por outro lado, uma tentativa mais sinestésica, de fato envolvendo o sistema nervoso. essa, lança a experiência o ato de ser criança. esta última é mais bricolagem. mais interessante, pois não fecha (abre, apenas).

eleonora me pontuou que são personagens exaustas, deprimidas, tristes… e voltou ao tema que julga ser central, da violência a criança. pensar nisso.

COMPOSIÇÃO > a composição apresentada foi uma mistura de composições individuais. foi especial. durou cerca de quase 50 minutos. foi especial porque eram os seis atores em jogo constante, sobre cadeiras ou de pé, se ajudando e escorando, fazendo e tentando. foi bom assistir. a sensação de que a peça já acontecia ali. enfim, novas descobertas. novos lugares. eles pararam a composição no momento em que o massacre da escola acontece.

aqui estamos nós.

Com a chegada da dramaturgia, as cenas começaram a ser construídas pelos atores e pela assistente de direção, Thais Barros, que esteve em muito mais ensaios que eu. Eu dividia a semana de trabalho e postava em nosso blog o que cada ator faria em cada ensaio. Assim, chegou um momento em que os blocos criados começaram a se costurar de maneira intencional ou mesmo inconsciente. Quero dizer: os atores iam construindo as cenas na sequência cronológica dos acontecimentos e, nisso, traziam as lógicas de um bloco criado ao outro, imprimindo de certa forma já uma maneira de se atuar e de se jogar. Neste momento, foi preciso intervir e, para isso, voltamos de maneira mais consistente aos viewpoints. Destaco a seguir alguns apontamentos realizados em nosso blog. Da postagem sobre PONTOS DE VISTA [ viewpoints ] [5], destaco o seguinte:

as próximas postagens serão traduções diretas do livrvo THE VIEWPOINTS BOOK – A Pratical Guide to Viewpoints and Composition, de Anne Bogart e Tina Landau. a partir destas leituras, creio que vocês terão contato – superficial – com a coisa. mas é o start para o trabalho em sala de ensaio.

no entanto, cabe pontuar algumas coisas sobre o uso desta ferramenta em nosso processo: como o próprio nome diz, Pontos de Vista (ou Viewpoints), nada mais são do que maneiras de se olhar para um dado objeto, corpo ou situação. [...]

a questão do PONTO DE VISTA está no olhar (e na consciência do olhar). eu posso ver um determinado PV em qualquer situação, basta querer vê-lo. para o ator em cena, ou em jogo, é possível desdobrar ações dentro de um campo específico (mas mesmo que ele se dedique apenas a jogar com FORMA, isso não me impedirá – como espectador – de ver gesto, resposta kinestética, duração, andamento, repetição… e por ai vai).

portanto, não se exijam este jogo da maneira errada. é apenas uma forma de ver. e quanto mais conseguirmos trabalhar nosso corpo para que ele comporte leituras possíveis, melhor para a nossa dramaturgia cênica.

Já na postagem sobre a importância de mudar o ponto de vista [6], publicada depois da citada anteriormente, destaco o seguinte:

temos algumas cenas, que foram divididas em blocos. vocês, atores, partem pro trabalho de levantamento de tais blocos, começam a montar um esboço, um primeiro chegar, algum corpo para uma dada sequência de acontecimentos. isso tem nos gerado quase sempre blocos muito distintos, alimentando a noção de bricolagem que permeia nosso espetáculo – ou seja – o nosso espetáculo virá a ser de fato uma colcha com muitos pedaços, muitas linguagens e formas. isso é ótimo. mas,

o que acontece quando dois atores que já fizeram um dado bloco se dão por satisfeitos?

isso está acontecendo porque dentro do nosso planejamento de ensaios vocês estão em pleno curso, sem atraso ou adiantamento. eu pergunto isso porque vários de vocês já terminaram seus blocos e mesmo assim seguem sendo exigidos em sala de ensaio. eu não posso me incomodar com essa exigência. eu não posso solicitar menos a vocês. há vários motivos: vocês estão em cena o tempo todo. não estando ali, em pleno diálogo ou ação, então se posicionem nas cadeiras. vocês não vão ficar parados assistindo a peça quando estiverem nas cadeiras. há muito a ser feito e vocês precisam ser completamente íntimos de tudo isso. ao solicitar a vocês que permaneçam, o que significa isso, uma mera exigência do diretor do espetáculo?

não, obviamente. isso significa que vocês esgotaram uma forma de ver o tal bloco já erguido. mas existem outras. poxa, estamos trabalhando com pontos de vista. se vocês pararem para analisar os blocos pelos mais variados pontos de vistas que temos, cada hora descobrirão uma nova coisa. e é essa a questão: o que a mudança do olhar traz para a cena? se pensarmos que cada espectador lança ao nosso trabalho um ponto de vista diferente… talvez tenhamos desejo e preocupação de fazer uma grande vistoria em nossa peça, filtrando-a por inúmeros pontos de vista.

escrevo estas palavras por saber o que vocês estão passando. mas não é nada excepcional, é o seu ofício. sobretudo, quando eu não estou em sala de ensaio, eu os convido a percorrer outro olhar sobre o mesmo. mas essa guinada no olhar cabe a vocês também. não dá pra ficar no mesmo e se chatear porque tá no mesmo. muda. redescobre. refaz.

Juntos, fomos assimilando que não era necessário montar o espetáculo a força, mas se dedicar aos seus pedaços. Cada bloco, cada cena ou pedaço, tinha força e importância equivalente ao todo. Foi por meio do somatório das inúmeras composições, da escolha e abandono de muitas ideias e criações, que chegamos ao espetáculo como um corpo sensível fruto de um trabalho coletivo. Foi preciso aprender a vislumbrar a encenação e abandonar tais vislumbres. Seguir caminhando e construindo sem muitas exigências exceto estas, a de caminhar e seguir construindo.


[1] http://oantiedipo.blogspot.com/2011/08/1.html

[2] http://oantiedipo.blogspot.com/2011/08/kevin-composicao-4-quando-eu-decidi.html

[3] http://oantiedipo.blogspot.com/2011/09/roteiro-geral-para-composicao-ser.html

[4] http://oantiedipo.blogspot.com/2011/10/11.html

[5] http://oantiedipo.blogspot.com/2011/10/sobre-pontos-de-vista-viewpoints.html

[6] http://oantiedipo.blogspot.com/2011/10/sobre-importancia-de-mudar-o-ponto-de.html

\\

Capítulo 8 do Memorial do Espetáculo, entregue como conclusão da disciplina Projeto Experimental em Teatro

“as duas crianças […] assistem a tudo, só que eles sobrevivem”

Clique aqui para ouvir o podcast do QUARTO ATO, feito durante o Festival de Curitiba. Neste podcast, SINFONIA SONHO é um dos espetáculos que são comentados. Pra quem não sabe, o podcast é o nome dado a um arquivo de áudio digital. De acordo com a descrição no site, o Podcast QUARTO ATO é uma conversa descontraída sobre os espetáculos de teatro que acontecem em Curitiba. No link acima, ou clicando sobre a imagem abaixo, é possível ouvir uma linda análise de SINFONIA (que começa por volta dos 08 minutos e 40 segundos).

Não deixem de ouvir!

Fonte: http://www.podu.com.br/QA-013