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sábado, 17 de novembro de 2012

Projeto do Espetáculo

Clique na imagem abaixo ou aqui para ter acesso ao projeto do espetáculo SINFONIA SONHO, com informações completas sobre o mesmo.


segunda-feira, 5 de novembro de 2012

NEGOCIAÇÃO INVISÍVEL_3/3

terceiro e último dia da oficina. sexta-feira 26 de outubro de 2012. escrevo sobre o fim da oficina apenas hoje, dia 5 de novembro, segunda-feira, também término da temporada de sinfonia sonho no glaucio gill.
parece um ciclo só. muita coisa. por onde começar?
aproveitar a distância do tempo e se deixar lembrar apenas do que se fizer lembrar.
pois vamos!
primeiro
difícil acreditar que a proposta da oficina pudesse ser contemplada. loucura. eu perco a noção, às vezes, eu acho. eu tenho certeza. mas é aquela coisa do impossível: às vezes é lindo e essencial se lançar contra o que, a princípio, nos julgamos incapazes de dar conta. eu amo isso. e ali, com os atores, atrizes e seres presentes, não que estivesse claro que não daríamos conta. não isso. mas era claro que o desafio seria imenso (quase impossível), afinal: a ideia foi não fazer uma oficina sobre sinfonia sonho, mas trabalhar sobre a criação cênica e relacional a partir de uma dramaturgia (?) estranha que mais era uma irritação minha que encontrou porto em palavras exclamadas.

pois agora, eu aqui, na frente deste computador, tentando relembrar alguma coisa, só consigo me ter na imagem - foto - da trama dos corpos. das aproximações e afastamentos. do estar em cena e ceder ao outro, para que o outro esteja. uma negociação muito delicada se armou (e eu não estou querendo vingar o nome da oficina). alguma coisa aconteceu quando na sexta-feira, final da oficina, juntamos diversas composições numa só. e apresentamos a poucos espectadores (a nós mesmos - sempre) e a alguns atores do elenco de sinfonia. alguma coisa aconteceu: a tentativa livre e não-ensaiada de se relacionar. ou seja: vida pura.
simples desse jeito.

como trazer para a encenação teatral a vida que, fora dos palcos, encontra-se encenada?
sensação constante de que a realidade não é espetáculo, mas sim, encenação. funciona com seus fluxos decorados, com as cordialidades entre humanos já ensaiadas (e mortas). com recepção ensimesmada, a vida nossa fora do palco num grau de mentira que eu me pergunto: como fazer teatro? como - ainda hoje - fazer teatro?


 

sei lá - por vezes (e essa oficina foi importante nisso tudo), por vezes, ao teatro cabe o papel de ser desfibrilador de nosso tempo. o teatro via choque (do encontro do tapa e sobretudo do beijo) desobstruindo o que se deixou ser esquecido. o teatro reavivando os ramos da complexidade natural do ser humano.
desculpem-me se me excedo.

a nossa composição juntava retalhos dramatúrgicos de um texto que almejava abordar a copa do mundo no brasil em 2014. esse é meio que o mote da próxima peça inominável. gosto, sobretudo, da negociação de muitos corpos no mesmo espaço. gosto da invasão que a cena faz na área destinada ao público. gosto muito de uma mesa e quatro cadeiras. e de vazio. e dos deslocamentos criados. rafael na escada descendo e cruzando o palco. as meninas tomando sol no chão verde de sinfonia. alexandre e beta na mesa (do início ao quase-fim). dudu na base da escada, junto com bruno rolando abaixo. junior vindo da platéia. gosto da presença do silêncio (como espaço para o que virá, mas que ainda não veio). sabe? vocês tiveram que negociar ao vivo e, na minha opinião, por vezes se perderam, por vezes se excederam, por vezes também - inevitável - me seduziram e levaram ao encontro.

deram à dramaturgia previamente escrita a batida das suas respirações (e a batida da dificuldade). nada escondido. sinto que a oficina possa talvez ter quebrado alguma cerimônia no fazer da nossa arte. ao menos, talvez, tenha sido o que eu mais quis dividir com vocês.
a possibilidade de nos desrespeitarmos um pouco, sabe? a possibilidade de esquecer a mesura e substituir cerimônia por encontro efetivo.

me chamou atenção como muitas composições criadas se assentavam num aqui-e-agora legível, fácil de decupar. ao mesmo tempo, davi e natássia trouxeram um gancho de teatralidade tal qual gancho que segura peças de carnes em açougues. gancho que vai no estômago e segura. e preme. e rasga. mas segura.
a escuridão. como pode ter se tornado - em nossa composição geral - como pôde o escuro gritar tanto (EU SOU TEATRO!!! EU SOU EXPRESSIVO!!!!!! EU SOU POBRE!!!!!!!!! EU TENHO O TAMANHO DESTAS DOZE EXCLAMAÇÕES!!!!!!!!!!!!) <<< quero dizer: a oficina me fez pensar a coisa da realidade encenada e a vida revivida em cena. logo, me fez pensar qual seria o grau zero da teatralidade. achei isso muito interessante (confuso e cheio de minhocas - por isso mesmo, puro adubo).

funcionou beta e david, quando a intenção do texto virou ação e não pensamento. funcionou a edição da cena, a montagem cinematográfica, a dramaturgia cênica enquanto guia da atenção do espectador. meu olhar foi tragado de um ponto ao outro. funcionou o jogo dos papéis, meninos. felipe e junior se aproximando e criando o próprio e o nosso interesse sobre aquilo que bruno tranquilamente abria a nossa frente. para falar de um assunto complicado (reificação) sem medo de terminar a composição tendo entendido tudo. funciona muito bem a diferença se encontrando. e, sobretudo, me encantou a rapidez pela qual vocês resolveram tudo isso (ressaltando a coisa do fim da cerimônia e da prontidão para a tentativa).
gosto sobretudo como a diferença em relação ao que o texto sugere, a princípio, é capaz de gerar. rir dos ossos encontrados na gamboa é o máximo, jéssica. sobretudo, davi, importante saber propor e saber perder. foi bom passar pela composição do cigarro frente à placa e dosar vontades e apostas, indo às vezes num jogo mais simples porém - por conta disso - mais efetivo.

gosto muito de lembrar o processo de criação da composição do eduardo + gunnar + fabíola. de um dia para o outro, nem fabíola nem gunnar puderam estar presentes. logo, eduardo se viu sozinho (justamente numa composição que dependia extremamente do jogo com os outros dois atuantes). foi ótimo ver a rápida rearticulação e o inevitável desdobramento da proposta inicial. gostei de ver a coisa do corpo semi-morto e o texto dele saindo por outra pessoa. é como se a composição tivesse me dado um bom exemplo para o mote do projeto concreto armado. ou seja: há um esgotamento tão grande deste assunto, desta questão. é um problema tão vasto que ao mesmo tempo em que nos oprime e nos lança à inércia, ainda assim, o nosso corpo segue falando, reclamando, investigando e problematizando a coisa.

as meninas do x-men (anna e amina) sutilmente trouxeram uma conversa entre meninas, quase adolescentes. bom ver isso surgindo de forma muito sutil. é bom quando o óbvio vem sutilmente, ou melhor, sorrateiramente. lembro aqui de ter sido esta uma composição cujas ideias formais (de criação, execução...) atrapalharam a chegada ao ponto (ao encontro entre as duas personagens). com um pouco de conversa, isso já se modificou. mas, de qualquer forma, foi um ótimo exemplo/experimento sobre as ambições criativas e expressivas e o quanto elas, por vezes, podem nublar o mais simples, o mais essencial da coisa toda.
interessante a abordagem de jéssica no solilóquio sobre as obras no maracanã. interessante o rigor do corpo e do texto. o texto enquanto ação, assim como o corpo em movimento. rolou uma espécie de ação vocal, sabe? a palavra ganhou estofo. interessante. talvez porque houvesse pouco movimento (fique me perguntando isso). mas é curioso - só agora me pergunto - como a rubrica queda de luz acabou virando uma mera interrupção. como expressar a dramaturgia? como recontextualizá-la? como se bater contra ela? sem ter que dela se abster ?

o jogo entre davi e jéssica foi curioso, porque evidenciou uma dramaturgia sem pé nem cabeça. não que não tivessem questões interessantes no texto, mas não havia rumo. no entanto, a composição nos deu em primeiro lugar a relação entre os dois (amigos, eram amigos? namoradinhos? o que eram? só sei que me fizeram ver o texto - diálogo - brotando da relação e não diretamente para a cena). foi curioso (sobretudo o riso no final - que veio da lista que havia dado para a composição - alterando a lógica prevista sobre o assunto).
a composição no escuro (davi e natássia) era declaradamente uma operação sensível (e menos dramática, menos teatral no sentido de querer nos representar algo). a coisa de conversarem antes, de mexerem no teatro, cortinas, luz etc e tal, acabou chamando atenção ao procedimento utilizado para nos explodir algo (que veio em seguida). na escuridão, o texto ganha asa. fica concentrado ao mesmo tempo que perdido. acho que neste ponto excedemos as interferências feitas à natássia (me chamando atenção para essa dosagem, essa edição da cena que é sempre o trabalho mais interessante/complicado).

anna também perdeu a parceira fabíola na realização de sua composição. foi curiosa, anna, a rápida apropriação do texto que você fez. a rápida contaminação do seu corpo com a irritação que eu havia posto em palavras (na verdade, fiz um corte numa entrevista - irada - com o romário). de qualquer forma, foi bom te ver pulsando o texto e sendo interrompida pela moça da limpeza do teatro. jogo de cintura. estar presente no aqui e no agora é a melhor forma de viver nestes tempos. é estar com o foco ligado, é responder kinesteticamente ao mundo. é saber lidar com o abrupto sem medo de ser engolido ou de assassiná-lo. a ideia de cobrir a área do tapete de sinfonia foi curiosa (precisaria de mais labuta para ganhar consistência), porém, ao mesmo tempo, a irritação culminando num gesto brega (do acidente vascular cerebral) foi 01 must (talvez, sobretudo, por ser ridícula, condenável, "mal feita").
rafa, a sua composição me deu o texto. que especial. sabe? eu estou querendo investigar a coisa do grau zero (sei lá de onde veio esse nome). eu tô muito interessado em voltar à palavra. em acreditar na sua força estranguladora e redentora, at the same time. nos seus extremos. e na sua materialidade (tendo como suporte o corpo do ator). eu curto isso (tô descobrindo estar curtindo muito isso). e a sua trajetória, mesmo que envolvendo deslocamentos no espaço, foi clara, direta e reta (ainda que com curvas). parecia levitar, você parecia levitar. tinha objetivo e você se agarrou nisso. você tramou --- melhor, ESCORREU --- uma lamúria consciente e consistente. o texto da professora deixou de ser texto da personagem e virou texto do mundo. voltou a ele. sei lá, tá? eu aumento as coisas (ou desdobro a fagulha da sua criação em outra coisa).

por fim, meninos e meninas, eu agradeço muitíssimo a doação a entrega e o encontro. é tão bom. é tão assustador e aconchegante. amei e espero muitíssimo fazer outros e outros e outros... sempre. peço esculpas na demora desta postagem. foi um arraso estar com vocês e espero - muitíssimo - que as implicações deste novo projeto - concreto armado - também afetem vocês e sigam mexendo com o nosso olhar pelo dia-a-dia. fiquem ligados no blog da peça --- armadoconcreto.blogspot.com --- vocês já são padrinhos e madrinhas neste nosso novo filho.



participaram da oficina: amina muniz + anna clara carvalho + beta borges + bruno marcos + davi palmeira + eduardo cardoso + fabíola buzim + fabíola ribeiro + felipe marcondes + jéssica barbosa + rafael dellamora + júnior vieira + natássia vello + alexandre david
além de diogo liberano, adassa martins e gunnar borges.
não custa informar: assim como nossa temporada de sinfonia sonho, esta oficina está sendo viabilizada pelo financiamento atingido no site catarse!

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"Teatro em evidência"

Crítica de SINFONIA SONHO
por Daniel Schenker

Clique sobre a imagem para vê-la maior.


Publicada no Jornal do Commercio em 02 de novembro de 2012

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

última semana de SINFONIA SONHO no Rio de Janeiro

de sexta à segunda, 02 a 05 de novembro de 2012, o teatro inominável realiza as últimas quatro apresentações de SINFONIA SONHO em nossa temporada no teatro glaucio gill. após estrear no festival de curitiba, em abril de 2012, o espetáculo já percorreu inúmeros festivais por todo o brasil e agora realiza a sua primeira temporada no rio de janeiro.

confira abaixo trecho das inúmeras críticas já publicadas sobre o trabalho:


para colocar o seu nome na list@amiga (r$ 10,00) basta enviar e-mail para teatroinominavel@gmail.com informando nome e data pretendida. lembramos: o nome na list@miga garante apenas o desconto no valor do ingresso. é preciso chegar com antecedência para comprar sua entrada. sujeito à lotação.

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"Uma narrativa de horror"

Por Ida Vicenzia Flores
(da Associação Internacional de Críticos de Teatro - AICT)

Desde a simples apresentação dos atores no palco, frente a frente com a plateia, qual puros-sangues na pole position, sôfregos para disputarem um páreo - vamos nos preparando, nós, o público, para o que virá depois. Enquanto o autor e diretor Diogo Liberato lê as rubricas, gestos impacientes brotam no elenco, tentando avançar sobre a plateia, mas capturados a tempo. Tudo, no espetáculo, é preciso, medido. Há realmente, impaciência e sofreguidão. E nada do que acontece em cena é aleatório, tudo é sopesado, medido. Aliás, esse é um dos espetáculos mais limpos e precisos, em termos de ação cênica, a que me foi dado assistir, ultimamente.

Estou me referindo a "Sinfonia Sonho" – na qual cairia bem um subtítulo: "uma narrativa de horror". Na cena, nada é negado. Estamos assistindo a jogos infantis, realizados por crianças inteligentes e precoces. Há, no ar, um clima David Lynch. Mas não somos inocentes: só não podemos imaginar o golpe que vai nos ferir profundamente.

Como observei acima, tudo é operado de maneira sistemática, para atingir a perfeição narrativa: bons atores, cenas bem resolvidas, equilíbrio de emoções. O desfecho pega de surpresa? Não. Mas o final é operado por dois atores que representam crianças. E sentimos uma dor profunda. Não é bom relembrar essa dor. No entanto, é vida pulsante, e não devemos nos negar a ela. Quem quiser assistir a um dos melhores momentos teatrais que se apresentam no Rio de Janeiro, ainda há tempo. E a autoria é de um coletivo de atores, em um exercício estruturado por Diogo Liberano, e orientado por Eleonora Fabião. Diz David Lynch: "Se você quiser pegar um peixinho, pode ficar em águas rasas. Mas se quer um peixe grande, terá que entrar em águas profundas. Quanto mais fundo, mais poderosos e mais puros são os peixes". Parece o óbvio, mas é apenas o belo.

Estamos tratando de um ataque - massacre! - narrado ponto de vista infantil. (Desisti de me insurgir contra essa mania que temos de copiar a Matriz, e vou comentar, do ponto de vista bíblico... essa caça aos inocentes) Como é possível, em nosso país tropical, ficarem os jovens atirando com armas de fogo sobre seus iguais? Pura imitação! Só lá em cima mesmo, a quem Deus mandou o Dilúvio... e o comércio de armas! Por que será que o Brasil não tem imaginação? E logo nas escolas, onde se está ensaiando uma peça infantil? "Assim não vai sobrar coleguinha para o elenco", comenta um dos irmãos (não rigorosamente com essas palavras). "Vamos ter que ensaiar tudo de novo!" - reclama o filho Kevin, inteligente e precoce, que foi esperto - segundo a mãe maníaca - ao se livrar a tempo das balas! Há humor negro, também.

Não posso esquecer, de dentro de minha indignação, que se trata de uma tragédia moderna, e das boas. É teatro. E, sem saber quem é quem, neste coletivo (o programa não diz) destaco as interpretações dos dois irmãos, não sabendo qual é o mais genial - quase aposto no filho. Os pais - e o casal desejoso de ser pai - e aquele ator que ronda, sobrevoa, o espetáculo - lembrando, coincidentemente, o filho morto de "Quase Normal". É tudo muito bom. O filho narrando a própria morte, ultrapassa a todas as expectativas do horror. No elenco, atores oriundos da UFRJ, UniRio, UERJ (e, por ordem alfabética): Adassa Martins, Andréas Gatto, Dominique Arantes, Gunnar Borges, Laura Nielsen, Márcio Machado, Natássia Vello, Rodrigo Vrech, Virginia Maria/Marcéli Torquato. Eles já montaram vários espetáculos, e com sucesso. O nome do grupo é "Teatro Inominável". Destaque para Direção de Movimento de Caroline Helena, a quem posso encontrar nas trevas. O cenário de Leandro Ribeiro é despojado, facilitando as cenas através de sua  nudez. E elas, as cenas, posso garantir, são um nó na garganta. Mesmo assim, é bom ver bom teatro.

"O absurdo reconhecido no cotidiano"

Por Soraya Belusi

Foto de Daniel Protzner

“Sinfonia Sonho” (*), como descrito no programa do espetáculo, nasceu do trabalho de formação de um grupo de artistas, então estudantes da UFRJ, cujo processo partiu do estudo do livro “O Anti-Édipo”, de Gilles Deleuze e Félix Guattari, e da adaptação do romance “Precisamos Falar sobre Kevin”, de Lionel Shriver, que, em linhas gerais, tem como fio condutor a narração de uma mãe em busca de entendimento do que teria levado seu filho adolescente a cometer um massacre em sua escola. Casos que, até muito pouco tempo atrás, pareciam fazer parte de uma realidade distante, coisas que só existiriam em países cuja cultura do capitalismo e esquizofrenia (citando os próprios Deleuze e Guattari) chegou a tal ponto capaz de gerar tamanha tragédia.

Mas, no meio do caminho, o coletivo (formado pelo diretor e dramaturgo Diogo Liberano e pelos atores Adassa Martins, Andrêas Gatto, Dan Marins, Virginia Maria, Márcio Machado, Laura Nielsen e Gunnar Borges, além dos professores/supervisores) viu-se atravessado pela tragédia ocorrida em uma escola municipal do Rio de janeiro, no bairro de Realengo, tendo que modificar, assim, seu percurso dramatúrgico inicial. Esse entrecruzamento de camadas entre real e ficcional, de narrativas próximas e distantes, do individual e do coletivo, do comportamento adulto e do infantil, do absurdo e do cotidiano, impregnou toda a linguagem que alicerça o espetáculo – entre o que está longe e perto, entre o quase naturalismo e o total estranhamento, entre a crueza o objetiva das palavras e a existência da poesia.

O retrato antigo de uma família arquetípica é o ponto de partida de “Sinfonia Sonho”, cujo centro do quadro apresenta ao público quatro personagens vendados. Essa composição cênica harmoniosa é invadida e revelada pela entrada de um narrador, que irá nos apresentar, de maneira distanciada e objetiva, quem são aqueles personagens e o que os une ali. É justamente essa presença afastada, de fora de ação, que reforça a ideia tão presente na dramaturgia de quão complexa e impalpável é a tentativa de se explicar a violência e a dor, causa e consequência diretas do impacto de uma tragédia coletiva.  O que o grupo propõe é “uma possibilidade de expressar o impossível”, diz Diogo Liberano no programa da montagem.

A montagem não busca explicar a tragédia, apenas a apresenta, problematiza-a, numa espécie de composição quadro a quadro, em que cada personagem delineia sua melodia no espaço vazio delineado no chão. A economia nos recursos de cenário e figurino permitem uma neutralidade em que se ressalta o desenho corporal e rítmico do jogo dos atores e dos personagens – como na cena de ‘apresentação dos personagens’ em que, numa espécie de dança de mãos, eles se contém uns aos outros para que não possam sair de seus lugares ou realmente se revelarem. A sinfonia do título se reproduz na partitura corporal que cada personagem apresenta, aliado ao sonho marcado não só pelos momentos em que Kevin tenta se tornar música quanto pela permanente presença dos atores à margem da ação central.

A crueldade expressa no jogo infantil – referência que me lembrou muitas vezes recursos utilizados na dramaturgia do absurdo por mestres como Arrabal e Beckett – serve de base à relação entre os irmãos Célia e Kevin, numa alternância quase cúmplice, concedida, de proteção e submissão. Mesmo cega de um olho, Célia enxerga o delírio que seus vizinhos estão submetidos e é capaz de compreender o irmão ao vê-lo indignado quando sua mãe diz que o fato de ele querer se tornar música é metáfora. Os adultos é que se encontram em mundos imaginários, que insistem em não querer aceitar a realidade enquanto seus mundos interiores parecem desabar (Eva que insiste em fingir que está tudo bem enquanto corre cegamente em busca do seu sucesso profissional, e Moira, incapaz de aceitar a morte de seu filho Tomas, vivendo uma gravidez delirante).

Quando irrompido pela presença de duas jornalistas, o trabalho parece perder essa complexidade apresentada até então para a caricatura do sensacionalismo. É verdade que a mídia costuma se comportar de maneira ultrajante, superficial e desrespeitosa em fatos trágicos. Mas a impressão é que a entrada desse elemento no espetáculo não acrescenta camadas de problematização às questões abordadas muito bem até ali pela dramaturgia. A presença dessas personagens acrescenta dinâmica à ação, estabelece uma conexão com a realidade banalizada cotidiana, mas, como na mise-en-scène da TV da vida real, pode desfocar a atenção do espectador do que realmente interessa.

As banais discussões de Célia e Kevin escondem reflexões sobre temas como a incapacidade de nos enxergamos mesmo que debaixo de um mesmo teto, o fracasso das relações inter e extra-familiares, a necessidade revolucionária de libertar o desejo, ou, para Kevin, o direito de sonhar só com o que se quer e de virar música.

Tomas também cumpre essa função de representar a incapacidade de seus pais de lidar com o horror da vida real, optando pelo delírio. O personagem vaga pela cena durante todo o espetáculo, sempre presente na moldura, mas ausente na ação. Relação que rompe, num choque entre o onírico e o real, ao se dirigir ao público e narrar o dia em que resolveu tentar voar com balões cheios de ar amarrados aos pulsos e acabou virando comida de urubu.

Neste quadro, as crianças já perderam a inocência, a possibilidade de “não sonhar apenas dormindo”, foram atravessadas pela realidade da pior maneira. São elas que pontuam o quão absurdo pode ser o cotidiano.

(*) “Sinfonia Sonho” foi apresentado dentro da programação do Festival Estudantil de Teatro, no Galpão Cine Horto.

"Uma poética de incompreensão para o horror"

Por Luciana Romagnolli

Foto de Paulo Teotônio

No trabalho criativo de um grupo que se batiza como Teatro Inominável, cabe o espanto que se sabe incapaz de nomear o horror. Observa-o, encara-o, mas não tenta explicá-lo. Sem nome, não há definição nem familiaridade possíveis, só estranhamento. Esta é uma distinção essencial entre o espetáculo “Sinfonia Sonho” e o romance que nutriu sua dramaturgia, “Precisamos Falar sobre o Kevin”. Enquanto a literatura da norte-americana Lionel Shriver nos apresenta o ponto de vista parcial de uma mãe-narradora que revê as memórias familiares puxando algum fio de explicação para o massacre cometido pelo filho, a obra do diretor e dramaturgo Diogo Liberano desprende-se da ânsia por sentido, descrê da análise psicanalítica e da possibilidade de compreensão.

Outra divergência central está na ausência de culpa – ao menos individualizada. Kevin, o filho, era o autor das mortes e, portanto, o culpado inegável no livro. Sobre sua mãe também pairava o peso da responsabilidade que se confere aos progenitores. Nesse ponto, contudo, o espetáculo se desvia, seguindo a liberdade natural de confecção de uma nova dramaturgia já prevista pelo diretor desde o princípio, mas repentinamente atravessado pela notícia do massacre de alunos em uma escola carioca por um atirador de 23 anos. Os abalos da tragédia real foram sentidos e absorvidos pelo grupo, de modo que a violência que interrompe a infância se consolidou tematicamente, e a atribuição de culpa parece tão impossível quanto a tentativa de explicação.

Os personagens densamente delineados pela autora norte-americana sobrevivem na encenação despregados de grande parte do contexto original, mas um fato significativo se mantém: a cegueira de olho de Célia, irmã de Kevin. Alusão ao Édipo, cujos olhos foram furados, ao qual o diretor carioca se contrapõe tomando por referência o “Anti-Édipo” de Deleuze e Guattari, adicionando um vórtice de sonho, onde os desejos são livres, à estrutura familiar piramidal. Mais que isso, Liberano apresenta a família toda fantasiada com tapa-olhos, numa imagem pungente de um núcleo cegado, que recorda uma frase do “Ensaio sobre a Cegueira”, de Saramago – “a responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam”. 

O grupo carioca se coloca nessa posição de olhar de fora uma tragédia contemporânea, ciente de que não tem como acessá-la por dentro sem preencher falsamente vazios que desconhece. A arquitetura do espaço cênico funda esse distanciamento. Enfileirados em cadeiras, os atores, com seus personagens latentes, acompanham a leitura do texto pelo diretor-narrador, até que chegue sua hora de ir ao centro do palco representar. A apropriação da realidade é mediada tanto por essa narração quanto pela intervenção de duas jornalistas, que, tal como o narrador, chegam ao palco vindo da plateia e reafirmando, assim, a conexão do grupo com o real, com a população e a cidade – não apartados na coxia numa arte descolada do mundo.

Ao mesmo tempo, não há pretensão de realismo. A presença dos atores sentados enfrentando com gravidade a plateia contém a imobilidade da ausência de futuro, mas também uma postura de desafio antirrealista que ajuda a estabelecer a tensão latente em cena. A tragédia é exposta como encenação, como construção coletiva de uma poética que tente elaborar o horror – enquanto, para os personagens adultos, não ser capaz de enfrentar o horror deflagra novas tragédias.

A sinfonia que batiza o espetáculo se traduz em partituras físicas que fazem de cada personagem uma linha melódica distinta – o mais perto que podem chegar do sonho de Kevin de tornar-se música. A pesquisa corporal permitiu que esses seres se comunicassem por posturas e gestos, pelo modo de seus corpos se sustentarem no chão e se moverem no ar, expressando uma essência intangível. Kevin e Célia são as composições de personagens mais sólidos – as crianças despidas de ingenuidade. O pai delas e o casal de vizinhos vagueiam no ar etéreo do luto. A mãe se fixa na caricatura do automatismo apressado da vida adulta, como se nunca estivesse de fato ali. Ao contrário de Thomas, o filho dos vizinhos, tão presente em sua ausência.

Liberano recortou do romance trechos passageiros que no espetáculo se dilatam reescritos poeticamente, como o ensaio de Kevin para a peça da escola, do qual nasce seu desejo de ser música. Com isso, o dramaturgo problematiza não só a representação, mas a possibilidade de colocar-se no lugar do outro e compreender o que é diferente de si: uma experiência de alteridade. A música escapa do sistema racional, como outra forma de expressão fora da linguagem. O sonho – materializado em Thomas – exerce semelhante função no espetáculo, um espaço de manifestação do eu, do não-decodificável. 

A construção da infância, dos jogos de cúmplice provocação entre irmãos, faz pairar sobre o espetáculo uma peculiar lógica infantil, com sua dilatação da razão, que soa nonsense em um mundo regido por adultos, mas sublinha o absurdo desse mundo. O delírio da realidade não acomete só a mãe de ego inchado pela carreira ou a outra, de barriga inflada por uma falsa gravidez. É uma sociedade inteira que participa do delírio. Veem-se adultos com fraquezas infantis e crianças que precisam responder a demandas adultas: identidades e maturidades distorcidas. “Às vezes, o aniversário não funciona”, diz Kevin a Célia. A vida não direciona os desafios obedecendo faixa-etária.

As duas jornalistas que enfim irrompem em cena trabalham sobre o reforço de clichês do sensacionalismo midiático diante da tragédia. Em suas ações não há o espaço da dúvida. Nisso, entram em atrito com o espetáculo, pontuado de lacunas e incompreensões. É sintomático quando uma das jornalistas pega o roteiro das mãos do narrador: o efeito do microfone e da prosódia radiofônica empostada cria uma espetacularização que se contrapõe à crueza da leitura neutra do narrador, de seu respeito aos fatos e aos espaços de absorção. O espetáculo cumpre um tempo de sustentação essencial, sobretudo, à cena derradeira.

Crítica publicada em ocasião do XIX Festival Nacional de Teatro de Presidente Prudente/SP