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Críticas

Montagem imperdível no Sérgio Porto
Por Lionel Fischer


"Sinfonia sonho apresenta a história de Kevin, uma criança de nove anos que de súbito se torna alvo de um desejo: o de se tornar música, por conta de uma peça teatral que começa a ensaiar em sua escola. Inspirado nos recentes acontecimentos envolvendo o massacre de crianças em espaço escolar na cidade do Rio de Janeiro, o espetáculo visa trazer a tona um olhar mais atento e responsável sobre a infância e, por extensão, também sobre o futuro".
Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima sintetiza algumas das premissas que motivaram a criação de "Sinfonia sonho", quarto espetáculo da companhia carioca Teatro Inominável, em cartaz no Espaço Cultural Sérgio Porto. Diogo Liberano assina texto e direção, estando o elenco formado por Adassa Martins, Andrêas Gatto, Dan Marins, Flávia Naves, Gunnar Borges, Laura Nielsen, Márcio Machado, Natássia Vello e Virgínia Maria.

Inspirado nas obras "O anti-Édipo", de Félix Guattari e Gilles Deleuze, e no romance "Precisamos falar sobre o Kevin", da escritora norte-americana Lionel Shriver, o texto de Diogo Liberano surpreende não apenas pelas pertinentes reflexões que empreende sobre temas como infância, futuro, relações familiares e diversificadas perversões, dentre outros, mas também pela forma com que os trabalha.

Desde logo fica claro que a montagem renuncia totalmente ao realismo, a começar pelo fato de que um ator (talvez o próprio Diogo Liberano) apresenta os personagens e lê algumas rubricas. Postados lado a lado, sentados em cadeiras e olhando fixamente a platéia, os atores sugerem estar imobilizados numa foto, congelados no tempo em algo que remete a um álbum de família.
Pouco a pouco, escapam dessa moldura - ainda que a ela retornem com freqüência - e se materializam na cena. Mas não o fazem como personagens cotidianos, mas sim impregnados de uma espécie de partitura física que traduz a essência de suas personalidades. E não raro pode-se constatar que, mesmo aqueles que não estão participando diretamente de uma cena, nem por isso permanecem estáticos, como ocorre no início do espetáculo, mas continuam expressando seus sentimentos, anseios ou dúvidas através de um esmerado universo gestual.
Isto posto, acredito ser impossível o espectador não se envolver totalmente com uma montagem que, tendo a motivá-la um texto belíssimo, exibe deslumbrante teatralidade. São tantos os signos e símbolos exibidos que torna-se impossível esmiuçá-los. E mesmo que alguns deles permitam múltiplas interpretações ou possam eventualmente soar um tanto obscuros, o que importa ressaltar é que estamos diante de um espetáculo que, dada a sua natureza, coloca o espectador no único lugar possível, ou seja, o lugar do desconforto. 
Ao longo da montagem, e sobretudo depois que a mesma se encerrou, me ocorreram muitas perguntas. Mas não me preocupei nem um pouco em tentar achar respostas, digamos, razoáveis, racionais, pois aí estaria negando as emoções vividas, estaria apenas tentando nomear o que muitas vezes não precisa - nem deve - ser nomeado. O fundamental, para mim, foi constatar que tive um fortíssimo encontro com este espetáculo, o que equivale a dizer que tive um fortíssimo encontro comigo mesmo. Assim, só me resta agradecer a todos a oportunidade que me facultaram de me conhecer um pouco mais.
Quanto ao elenco, tenho por hábito não particularizar interpretações quando o trabalho é feito por um grupo, pois sei que o resultado, mesmo que eventualmente evidenciando talentos mais apurados do que outros, depende sobretudo da total cumplicidade e capacidade de entrega do conjunto. E, salvo monumental engano de minha parte, imagino que os integrantes desta jovem e talentosa companhia caminharam de mãos dadas ao longo de todo o processo criativo. Portanto, a todos parabenizo e desejo que os sempre caprichosos deuses do teatro continuem abençoando a companhia carioca Teatro Inominável.
Com relação à equipe técnica, destaco com o mesmo entusiasmo as participações de todos os profissionais envolvidos nesta mais do que oportuna empreitada teatral - Eleonora Fabião (orientação de direção), Caroline Helena (maravilhosa direção de movimento), Philippe Baptista (direção musical), Leandro Ribeiro (cenário), Ronald Teixeira (orientação de cenário), Isadhora Müller e Marina Daldalarrondo (figurino e visagismo), Desirée Bastos (orientação de idumentária), Davi Palmeira e Thaís Barros (iluminação), José Henrique Moreira (orientação de iluminação) e Verônica Machado (preparação vocal).
SINFONIA SONHO – Dramaturgia e direção de Diogo Liberano. Com Teatro Inominável. Espaço Cultural Sérgio Porto. Sexta e sábado, 21h. Domingo, 20h. 


Nós precisamos sonhar com uma frágil sinfonia?
Crítica da peça Sinfonia Sonho, do Teatro Inominável



O espetáculo Sinfonia Sonho do Teatro Inominável, dirigido e escrito por Diogo Liberano, busca pensar o absurdo dos massacres infantis em espaços escolares, partindo de dois motes: a ficção presente no livro We Need to Talk About Kevin de Lionel Shriver e o caso real ocorrido na Escola Municipal Tasso da Silveira, em Realengo. Nesse sentido, a obra reflete sobre o espanto que nos atingiu ao assistirmos no Brasil um incidente semelhante ao de Columbine.
Tal acontecimento nos fez pensar sobre a brutalidade da globalização, visto que traduzimos/importamos um modelo de violência oriundo de outro contexto social à nossa realidade. Não sei se foi o primeiro fato de massacre infantil no Brasil. Mas certamente foi o primeiro de grande destaque na imprensa local, seguindo uma lógica explicativa própria aos fenômenos americanos, firmada na terminologia clínica internacional – o bullying.

O termo é a causa do absurdo. Ele busca justificar o injustificável. O Teatro inominável não aceita essa lógica causal – não quer dar nome ao horror. Constrói uma obra que, do início ao fim, luta contra esta simplificação incutida em nossa mentalidade. A peça opõe-se ao esquematismo dos meios de comunicação por conta de uma vontade poética, reivindicando a força simbólica e reflexiva da poesia.

Há três blocos sociais em Sinfonia Sonho: a família extraída do livro americano, a família (mítica) de vizinhos, inspirada no massacre em Realengo, e as duas repórteres que entram em cena, expondo o automatismo da imprensa diante do pânico grupal. Além disso, em cena há o jovem Liberano lendo as rubricas. Ele é o poeta que busca o estado de ação, participando pelo simples ato de ler breves passagens descritivas. Aí se observa o estranhamento do poeta diante do episódio trágico da polis. Sua fala-leitura se faz presente até ser invadida pelas repórteres que roubam as suas palavras. Esta participação pequena e oprimida do dramaturgo-diretor no decorrer da peça reivindica o estranhamento trágico e expõe uma critica à nossa sensibilidade calcificada e cínica pela logicidade midiática.
O Teatro Inominável leva a sério a si e aos outros. Esta afirmação é propositadamente polêmica por perceber tal companhia fora de um veto a seriedade que atinge o nosso teatro. Porém, o termo sério aí não se refere ao narcisismo da seriedade (o mais comumente praticado), em que o sujeito/coletivo se liga a determinados temas e quadros referenciais com a aspiração de trazer para si autoridade. Tal sentido de gravidade brota da percepção de um ponto de interseção existente entre mim e o outro. Ou seja, a existência de um nós que não deve ser interpretado como fascista, visto que a necessidade dessa pessoa do discurso se dá pela indispensável aproximação dos sujeitos no momento da invasão do horror, uma vez que esse acaba por produzir uma aproximação solidária. Esta solidariedade se forma por meio de um conjunto comum (este nós) no que ele tem de arriscado, isto é, a minha dor + a dor do outro = a nossa dor. Daí nasce o desejo de sinfonia. Não de uma sinfonia romântica de aspiração fascista, nem de uma sinfonia real, mas de uma frágil e dolorosa sinfonia, isto é, um sonho de sinfonia – frágil utopia (como o desejo de Kevin de se tornar música).
Liberano percebe que determinados temas sociais e políticos devem ser discutidos e postos em cena de modo responsável. Certamente, a existência do humor em Sinfonia Sonho não está se opondo à necessidade de se trabalhar o tema do massacre infantil de modo respeitoso. O humor visto neste espetáculo não é aquele reivindicado por uma inteligência irônica (‘superior’), mas é o humor crítico, dobrado sobre si mesmo, pensando acerca de sua medida diante do advento catastrófico. Nesta peça, o riso nervoso chega por conta da falta de lágrimas, ou juntando-se a elas. Pois não rimos apenas porque somos superiores aos animais, como muitos já disseram, rimos porque estamos automatizados para o riso, assim como as nossas máquinas expõem o automatismo da nossa inteligência. Logo, nem todo riso é crítico. Torna-se crítico aquele que percebe o automatismo de seu riso e de sua inteligência.
A associação à ideia de tragédia contemporânea em Sinfonia Sonho deve ser lida pela vontade do coletivo de tematizar um acontecimento real e político que nos atingiu. Este ultrapassou o limiar do ficcional e da loucura e alcançou uma realidade esquecida: Realengo. Explicar, racionalizar o fato seria uma atitude ingênua. Deve-se preservar um sentido poético e trágico diante desses acontecimentos. Assim sendo, não há moralismos. Há seguramente o sentido moral da tragédia – seu espanto diante da desmedida do homem. Conforme Liberano relatou, este ultrapassamento se inscreveu no próprio processo de feitura da peça, uma vez que o coletivo estava fazendo suas pesquisas, lendo o livro de Gilles Deleuze & Félix Guattari O antiédipo… e o de Shriver, quando se sentiram forçados a reagir ao massacre sucedido nesta escola municipal do Rio de Janeiro.
Para compor essa tragédia contemporânea, o coletivo buscou máscaras sociais atuais. Em Sinfonia Sonho, os três grupos sociais (as duas famílias e as repórteres), apesar de se relacionarem e de serem fortemente estilizados, possuem um tratamento diferenciado. A estilização se dá pelo fato de no próprio figurino e na composição das personagens se verificarem o caráter reconhecível dos tipos solicitados dentro de um imaginário comum.
As duas jornalistas interpretadas por Natássia Vello e por Flávia Naves optaram por criar o estereótipo de suas figuras através de uma violenta apresentação dos clichês da profissão. Tal lugar-comum se acentua na fala ao microfone, expondo o automatismo da imprensa perante o ocorrido. No entanto, o trabalho com o clichê não impede que as atrizes construam momentos de quebra. Ou seja, na figura protocolar e burocrática da jornalista há espaços para a interiorização. A primeira aparição de uma delas (Natássia Vello) se dá mediante a exposição desta tensão, pois a figura pública e protocolar da âncora de jornal reage de modo grave ao conteúdo trágico da notícia. Há uma sutil diferença entre as duas atrizes: Flávia explora mais o humor artificial da atividade jornalística, enquanto Natássia está mais contida e interiorizada em cena. Tal diferença se efetua sem a perda da exposição da violenta artificialidade dos meios de comunicação.
A família retirada do livro We Need to Talk About Kevin de Lionel Shriver aparece em cena como se fosse composta por personagens em quadrinhos. A composição da mãe, Eva (Virgínia Maria), é bem requintada e muito apoiada na observação sensível de personagens caricaturais de famílias americanas, presentes em programas de TV/filmes/séries/desenhos-animados que expõem a célula familiar de modo crítico. Seguindo o mesmo recurso de observação, o ator e a atriz que interpretam o filho, Kevin (Márcio Machado), e a filha, Célia (Adassa Martins), constroem suas caricaturas. Eles, entretanto, ultrapassam o caricatural construindo um jogo de interiorização e exteriorização. Tal procedimento parece ser o coração da peça, uma espécie de intermitência entre a máscara ficcional e a morte real. Isso fica bem visível em dois momentos: quando Kevin e Célia estão ensaiando uma peça infantil depois do massacre das crianças e no final da peça quando estão caídos no chão.
A família mítica que alude ao acontecido em Realengo possui outro tratamento formal. Esse não está baseado na caricatura de programas de TV. As roupinhas da criança morta, retiradas por Célia de dentro da barriga de Moira (a mãe pobre do menino Thomas), expressam a qualidade de tratamento dado a essas figuras. Elas são uma espécie de monstruosidade social, condenada ao extermínio. A mãe, Moira (Laura Nielsen), o pai, Corley (Andrêas Gatto) e o filho, Thomas (Gunnar Borges) são frágeis interiorizações, assim como o ventre ficcional daquela mãe. As roupinhas expressam o desamparo destas figuras. Entre os três, há uma espécie de doçura doída de um real perdido. O Realengo da peça é cru, seco, mas irreal. Porém sua irrealidade é como a loucura daquela mãe. É a ficção mentirosa. E não a ficção em sua plenitude crítica e criativa. Realengo é o resultado da violência da globalização em nós – que pôde construir um assassino, vestido de mulçumano pela identificação com a cultura periférica do islã, mas justificando o seu ato pelo bullying psicológico, próprio da terminologia clínica americana.
No espetáculo, há uma belíssima cena em que o jovem Thomas relata a sua morte. Em outra de igual qualidade assistimos ao pai diante do corpo do filho morto. Elas retratam bem o desamparo desta família. De certo modo, é como se as duas cenas fossem as roupas da barriga fictícia da Mãe, Moira (o destino). Sinfonia Sonho formula uma ficção crítica e criativa que discursa sobre o horror presente em nossas ficções doentias, nossas tragédias. Isto se dá porque Moira (a mãe-o destino) está presa a esse engano, ao entendimento doentio sobre a ficção. Precisamos de um antiédipo para acabar com a lógica viciada e enganosa que constrói as tragédias humanas. Mas enquanto elas existirem vai ser necessário refletir sobre elas por meio do estranhamento poético próprio à ficção em sua face criativa e crítica.
Devido ao fato de essas máscaras serem reconhecíveis e de os acontecimentos estarem frescos em nosso imaginário, a peça faz menção aos fatos utilizando-se de elipses. Sabe-se do massacre, das máscaras sociais, da angústia dos acontecimentos, tanto do de Realengo quanto dos das escolas americanas, que alimentaram a ficção de Shriver, porém estes episódios não são sublinhados na narrativa do espetáculo. Em cena, não há massacre. Ele está presumido na mente do público e nas falas das personagens que se referem ao acontecido. Assim, Sinfonia Sonho nos mostra o tema referido sustentando o sentido de tragédia solicitado pelo espetáculo, visto que assistimos à peça com o libreto do ‘mito’ dos massacres em nossa memória.
Apesar da diferença entre os blocos, Sinfonia Sonho edifica um sentido de todo por meio da centralização em torno do tema, pela ocupação do espaço, e, principalmente, muito ancorado às direções de movimento (Helena Cantidio) e música (Philippe Baptiste). A totalidade dentro desse espetáculo se apresenta na forma de dobras, isto é, a peça se liga por dobras elípticas e não por ser um todo esférico sem rugas. Mas certamente há nela essa vontade totalizante própria à tragédia. A tarefa da direção de movimento deve ser entendida como uma tinta que une os desenhos. Ela faz com que essas máscaras e composições flutuem e se dobrem dentro desta ‘sinfonia’. Sem esse trabalho e sem a música, o espetáculo não alcançaria o seu desejo de ser uma tragédia contemporânea. Pois não há tragédia sem música e sem coreografia. Certamente, a qualidade das direções deve ser valorizada pelo grande desafio proposto pelo grupo e pelo resultado atingido.
Porém, a meu ver, a direção de movimento se excede com suas manchas de tinta em determinados momentos, fazendo com que o trabalho de corpo caia no risco da abstração: o vago. Às vezes, Márcio Machado se excede gestualmente, correndo o risco de apresentar em seu trabalho um exibicionismo corporal desnecessário. Mas a alta qualidade de sua pesquisa de ator não se perde. Já a gestualidade abstrata no corpo de Adassa Martins nunca cai nesse risco, seu corpo treme, desgoverna-se, mas não vagueia sobre si mesmo, nem perde o foco de contracenação ou de sua ocupação espacial. Laura Nielsen, Andrêas Gatto, Virgínia Maria, Natássia Vello e Flávia Naves atendem com precisão ao que lhes é solicitado, sem correrem o risco de se perderem sobre a partitura corporal. Gunnar Borges constrói momentos abstratos cheios de lirismo, repletos de atenção ao que está sendo trabalhado na cena. No início da peça, seu corpo parece flutuar dentro de um ventre materno, e, ao fim do espetáculo, flutua nas nuvens sendo dilacerado por um balão. Parece haver um elo entre o jovem morto dessa família e o pai pacífico da outra, vestido de branco. Entretanto, no trabalho de Dan Marins (Frank – o pai de Kevin e Célia), a vaguidão da expressão corporal fica mais acentuada. Sua diferenciação daquele ciclo familiar está muito apoiada numa execução de gestos, que, em alguns momentos, apresentam o esqueleto da partitura corporal, como se o ator estivesse dando atenção à sua ação física mais do que a contracenação com os outros atores do espetáculo.
É interessante quando a pesquisa corporal destrói o que determinados homens de teatro chamaram e chamam de psicologismo. Contudo, a execução acentuada de partituras, reconhecíveis em espetáculos de dança contemporânea, pode, igualmente, cair numa reificação de um mero fisicalismo. Por isso, gosto especialmente da coragem do coletivo de pôr em cena um gesto de tapa na cara melodramático (o de Moira em Corley), encarando toda a pieguice e anacronismo do ato. A execução desse gesto junto ao flutuar do menino obriga o público a perceber a justaposição dos procedimentos. Faz-se assim uma dobra.
Em Sinfonia Sonho, a composição do espaço (Leandro Ribeiro) é crua e interessante. Ela me remeteu, sutilmente, à imagem de uma sala de aula. Essas famílias fictícias e o dramaturgo-diretor são os ‘alunos’ dessa escola sem uma figura de poder (o professor/ o Estado). Penso que essa ausência é crítica, pois o Estado abandonou as escolas, deixando o professor sofrer as consequências da revolta contra o poder. Sem poder algum nas mãos o professor virou o Judas dessa revolta social. Eis outra peça, outro tema para uma grande tragédia. Junto ao público estão as duas jornalistas. Na plateia, elas ratificam o nosso automatismo de receptores/consumidores midiáticos diante desse espetáculo atroz. Então… Precisamos sonhar com uma frágil sinfonia? Se for possível sonhar sem o pesadelo do bicho-papão, sim.
Digressão final: fico feliz que o espetáculo tenha surgido numa universidade pública brasileira – UFRJ. De algum modo, há um retorno ao país, em forma de reflexão poética, sobre o absurdo de Realengo.
Na peça, há as famílias, a imprensa, os alunos, o diretor-dramaturgo (representando os artistas que trabalham com arte). Há, entretanto, uma ausência: a figura do professor, esquecido em nossa sociedade. Por isso, o meu agradecimento aos professores que orientaram essa peça de formatura. Sem eles, não há esperança para se construir uma arte reflexiva neste país. O fato de se fazer menção a essa ausência não se configura numa observação negativa à peça. Apenas é a exposição de uma constatação: há um veto estético diante da figura do professor. O empobrecimento dessa figura é tão grande em nossa cultura, que é mais fácil imaginarmos uma tragédia baseada em figuras marginais do que na imagem do professor.
Uma reflexão: haverá um Eurípides que terá coragem de trazer o professor para o centro de uma tragédia? Ou o professor continuará rebaixado pela violência das comédias cotidianas?
Uma dedicatória: sem o afeto que eu tenho por Marina Vianna (atriz generosa e professora de teatro) essa crítica não existiria. Foi ela quem me apresentou o Teatro Inominável, e me ensinou a apreciar a coragem desse coletivo.



Constructo

Crítica da peça Sinfonia Sonho, de Diogo Liberano, do grupo Teatro Inominável

Por Humberto Giancristofaro
[http://www.questaodecritica.com.br/2012/05/constructo/]

Kevin (Márcio Machado), menino de 9 anos que acaba de se mudar com os pais e a irmã para uma casa nova, tem um desejo que expressa o motor da peça Sinfonia Sonho de Diogo Liberano: ele quer virar música. Da mesma forma, cada passo tanto da dramaturgia quanto da atuação indica um desejo de mesma natureza. A direção busca operar uma mudança de valores, por meio de uma revolução das sensações. Ou seja, fazer do corpo dramático um acontecimento teatral alinhado à percepção causada por uma sinfonia. A base desse experimento é guiada por Diogo Liberano de dentro do acontecimento. Sentado em cena com o roteiro em mãos, ele incorpora o narrador e presentifica o diretor, fazendo as vezes de um maestro para apontar o ritmo, a textura e a amplitude dos eventos e dos personagens.

O que de fato é interessante na mudança desejada, não é aonde ela quer chegar, mas a experiência de mudar. É nesse ínterim que a peça ocorre. Ela é uma peça enquanto acontecimento. A família de Kevin nunca completa a mudança de casa, as caixas estão fechadas e a iminência de voltar para a casa antiga ou ir para outro lugar paira no ar. Mesmo no núcleo familiar as mudanças não param de acontecer; a mãe está sendo transferida, o pai está largando a medicina, a filha está fazendo aniversário (a semana toda, ela brinca) e Kevin não para de tentar virar música. É uma família enquanto acontecimento. Assim, o acontecimento se torna um personagem nessa peça.

O espectro desse personagem-acontecimento é Tomas (Gunnar Borges), filho desaparecido do casal vizinho, que espreita a trama como um fantasma. Ele não está lá, pois, na narrativa, foi levado por balões de ar em seu aniversário. Porém, por meio de uma atuação muda e repleta de elementos da dança, Tomas vivifica as ideias dos outros personagens em meio às cenas. Seus passos são sempre claudicantes e, acima de tudo, escapantes – como é a qualidade inerente ao acontecimento. Na verdade, a força proveniente da expressão corporal de todos os atores é crucial para que esse personagem-acontecimento se sustente durante o espetáculo. Os corpos dos atores funcionam como usinas e cada um pode afetar e ser afetado pelos demais, todos são potências causais. As cenas são tocadas como notas musicais e exploraram a vitalidade desse afeto, misturando os efeitos provenientes do encontro dos corpos para fazer acontecer uma sinfonia.
A proposta de Kevin subverte a lógica de que um corpo nunca muda de natureza – ele apenas modifica suas qualidades segundo os outros corpos lhe afetem. Ele quer se reconstruir, transubstanciando seu corpo para tornar-se apenas afecção. Para virar música ele precisaria se desnaturar e se tornar acontecimento. Esse é o paradoxo defendido por sua mãe, Eva (Virginia Maria). Kevin insiste, porém, até encontrar uma saída. Eva é o signo da ordem no caos do acontecimento, ela é a parcela que puxa a peça para o eixo do esperado. No estado virtual, o acontecimento possui infinitos destinos, entre eles os que seguem os modelos antigos e projetam a espiral para o mesmo ponto de sua partida. Diante do absurdo vivido por Eva, durante o massacre ocorrido na escola que dirige, ela escolhe a saída comum do acontecimento, escolhe atualizar sua experiência de acordo com o senso comum, ao invés de compactuar com as possibilidades de liberdade que Kevin lhe aponta. Ela força tudo para o eixo, enquanto Kevin desmancha os gonzos. Por meio dessa antítese a ação de Kevin fica mais explícita. Contudo, ele preserva a esperança de que sua mãe faça parte da sua sinfonia.
O pai de Kevin, Franklin (Dan Marins), por sua vez é o esgotado no olho do furacão. A ordenação imposta por Eva, a princípio, é que produz o estado de mudança. Para ir em frente na vida e agarrar sua promoção, ela é quem movimenta a roda da fortuna para toda a família. Franklin, contudo, não tem seu gosto pela vida renovado com isso, ao contrário, não vislumbra possibilidade alguma para sua existência sob as novas condições que lhe vão sendo impostas. Ele tem que formar uma série exaustiva de tarefas para sustentar a nova casa, mas não pode fazê-lo por sua profissão, já que precisa cuidar das crianças; sua voz foi estancada pela propriedade provedora da mãe; sua imagem de pai fica dissipada, extenuando a sua potência de agir no espaço da casa e da família. Tudo isso fica impresso pelo corpo do ator, ele apresenta solos de movimentos entremeados às cenas, nos quais procura resgatar sua vitalidade, mas é sempre fadado a passos que o exaurem cada vez mais. Não são as possibilidades que acabam para Franklin, mas as potências de agir. Neste estado fissurado é que o corpo de Franklin pode vislumbrar a proposta fissurante de Kevin. Esta é uma outra potência, fora do eixo. O estado esgotado dele é que o capacita a ouvir a inaudível sinfonia com a qual Kevin sonha se tornar.
A aproximação com o casal de vizinhos, Moira (Laura Nielsen) e Corley (Andrêas Gatto), é o que leva o desejo de Kevin para sua máxima potência. A crise do casal, que se torna cada vez mais evidente, traz consigo o gatilho que Kevin estava procurando para dar início à sua transmutação. Um casal com uma crise particular que traz uma disjunção alojada no ventre. Moira, que perdeu seu filho, sofre de uma gravidez psicológica. Mesmo sem compactuar com a mulher, Corley faz parte desse drama e não sabe como solucioná-lo. Vistos juntos, eles apresentam mais uma peça da teoria do desejo. Desejando a volta de seu filho desaparecido, eles desejam um conjunto de realidade, não um objeto. A ligação do desejo a um objeto é uma visão por demais econômica, em que a falta criaria o desejo. Nesta outra visão, o desejo é de um todo, de um cenário. Eles querem recriar a realidade do filho e distorcem a realidade para reavê-lo. Esta distorção forja um novo equilíbrio, sem o qual se corre o risco de mergulhar num nível de desadequação que pode chegar a ser fatal. Esse equilíbrio depende de um agenciamento entre as novas regras imaginadas e as regras anteriores, normalmente, num jogo de altos e baixos, defesas e negações Corley é a polaridade de negação dessa realidade, mas ainda está dentro deste mesmo jogo. Livrando-se do ponto de vista distorcido, Kevin obtém a ferramenta conceitual para virar música. Ele apreende que seu desejo não é de um objeto e sim de uma paisagem que deve ser construída. Para devir-música ele precisa agenciar todo o conjunto de sensações que o levem a isso, incluindo toda a sua família.
Sua irmã, Célia (Adassa Martins), também interpreta o desejo do irmão como o de um objeto, mas não projeta a falta como elemento desse desejo, pois está concentrada demais na certeza do seu êxito. Ela anseia pela hora em que ele, ao se tornar músico, será famoso. Ela traz para o irmão a calma de que o desejo é delirante e que nem por isso é implausível. Ou melhor, que justamente por isso é que é desejo. Desejar o cotidiano é simples programação, como faz Eva. Célia, com suas ideias de nunca mais crescer, por exemplo, apresenta o delírio desenfreado como a natureza do desejo. E é isso que deixa Kevin confortável para levar a cabo seu desejo.


O teatro e o seu bom uso
Por Rodrigo Monteiro
[http://teatrorj.blogspot.com.br/2012/04/sinfonia-sonho-rj.html]

“Sinfonia Sonho” é o quarto espetáculo do Grupo Teatro Inominável, uma companhia que nasceu em 2008 a partir do encontro de estudantes de teatro da UFRJ e da UNIRIO. Com dramaturgia construída ao longo do processo a partir de várias referências, a representação do massacre do Realengo, ocorrido em abril de 2011, é a ponte além da narrativa mais visível. Um homem, um dia, entra armado em uma escola pública e mata vários estudantes aleatoriamente, atirando em si próprio depois em um dos corredores. Incompreensão, dor. Mães que perdem seus filhos, a escola não mais como um lugar seguro, a criança como uma promessa de futuro agora inexistente. Eis aí o desafio: como tratar de um acontecimento de proporções tão graves, com conseqüências tão sérias e sentimentos tão profundos em uma cidade e em um país que parecem não gostar de lembrarem-se de coisas ruins? Com 24 anos, Diogo Liberano, que assina a dramaturgia e a direção, enfrenta aqui o desafio e vence. “Sinfonia Sonho” é um espetáculo teatral que emociona sem ser piegas, faz pensar sem ser moralista, entretém sendo bastante responsável.

Em cartaz no Teatro Sérgio Porto, “Sinfonia Sonho” se apresenta com elementos que remetem às peças didáticas de Bertolt Brecht, embora aqui a questão não seja politicamente ideológica, mas diga respeito à violência com que tratamos a nós mesmos, os nossos e aqueles que não conhecemos. Não há cortinas que abrem no início (gestão tão raro ultimamente) e o diretor entra em cena, participando da peça, lendo as rubricas previstas no texto. Não há também coxias e a encenação prevê a delimitação de um espaço em que os atores se sentam e assistem às cenas quando não estão nelas. Os ganhos da encenação se vêem na forma como a peça constroói a sua linguagem e, logo em seguida, a desconstrói. A divisão, por exemplo, entre espaço para atuar e espaço para esperar desaparece em alguns momentos. No mesmo sentido, a oratória pausada e irregular, que marca o teatro como não-realidade, se transforma por vezes em um tom absolutamente natural, bastante próprio do real além da narrativa. As expressões corporais e faciais agem no mesmo vai e vem do discurso oral, o que, e aí está o maior ganho estético da produção, não permite que as emoções se aprofundem além da consciência, que o espetáculo caia no melodrama e que a catarse perturbe a reflexão. Não há nenhuma gag de humor negro, mas o riso vêm mesmo assim quando a forma aparece mais do que o conteúdo, um sinal aparente de despertar o espectador para o que se está (vi)vendo. Se “Sinfonia Sonho” é uma produção cheia de méritos pelo conteúdo abordado, a forma escolhida é seu maior lucro.

Kevin e Célia são filhos do casal Eva (Virgínia Maria) e Frank (Dan Martins). A morte do pai de Frank e a transferência de trabalho de Eva, faz com que a família se mude de cidade no dia do aniversário de Célia. Na nova casa, a família é vizinha de Corley (Andrêas Gatto) e Moira (Laura Nielsen), que vivenciam uma estranha gravidez (Gunnar Borges). Os ambientes familiares e suas questões são ponto de partida para ser o contraponto do mundo exterior ou, talvez, o seu espelho. Com um elenco constituído somente por bons trabalhos de interpretação, Liberano providencia um espetáculo de grandes qualidades também nesse sentido. No entanto, os trabalhos de Márcio Machado (Kevin) e, sobretudo, de Adassa Martins (Célia) se destacam positivamente, talvez, porque estão mais tempo em cena e, por isso, têm mais oportunidades de mostrar um excelente uso da voz e do corpo em prol do todo cênico. Coerentes com a concepção que embasa uma produção cênica disposta a representar um tema pesado de forma não tanto, não há grandes aparatos técnico-visuais em cena. Discretos, figurinos, iluminação e trilha sonora, agem positivamente pouco, embora o último quesito chame, talvez, mais a atenção do que realmente poderia. Em termos de dramaturgia, o aspecto negativo é a fuga da hierarquia, essa expressa no esforço de fazer de todos os personagens, em algum momento, o protagonista. Duas horas de narrativa parece ser tempo demais para o trato dessas questões dessa forma e o cansaço prejudica a fruição, mesmo que não lhe tire valor. Na escola, Kevin e Célia estão ensaiando, cada um com sua turma, uma peça de teatro. A peça de dentro faz metáfora para a peça de fora. O teatro, no seu conceito mais sublime de um ator que interpreta um personagem diante do público, aparece aqui de forma bastante elogiável.


Sinfonia corpo
Texto sobre a peça Sinfonia Sonho, do Teatro Inominável, com direção de Diogo Liberano

Peça de formatura de Diogo Liberano, no curso de Direção Teatral da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Sinfonia Sonho trata de temas inatingíveis. O processo começa com o estudo do livro O anti-Édipo, de Gilles Deluze e Félix Guatarri, e chega aos massacres escolares que marcaram a última década no mundo, principalmente nos EUA, mas que no Brasil temos um caso conhecido, numa escola municipal do Rio, em Realengo. Sobre os massacres a leitura do blockbuster Precisamos falar sobre Kevin – que narra a história de um americano de 16 anos que matou pessoas na escola, o pai e a irmã – norteou um tipo de estudo sobre esses acontecimentos. Além destes assuntos, memória e construções individuais deram à dramaturgia construída um teor pessoal.

A dramaturgia foi se criando durante o processo e o material fixado, enquanto texto falado, é rico em rubricas e diálogos que tomam distancia, propositalmente, do formato de uma conversa cotidiana. Neste sentido trata-se de diálogos impossíveis. A história que se estabelece chega ao espectador em zoom, como numa fotografia, que separa o olho do resto do corpo, e por alguns instantes aquele olho torna-se um elemento estranho do corpo inteiro. O corpo inteiro, neste caso, é o mundo, e a parte ressaltada, e por isso estranhada, é a história de uma família.

A família de Célia de 7 anos, e Kevin de 9 anos, estão de mudança porque a mãe Eva foi convidada para ser diretora de uma escola. O pai, Franklin, interrompe a profissão de médico para seguir viagem e cuidar das crianças. Célia usa um tapa olho porque foi furada pelo irmão aos seis anos com o espeto de Fondue. Seus novos vizinhos Corley e Moira sofrem a perda de um filho enquanto a mulher vive uma gravidez imaginada. Thomas, o filho deles, morreu após subir aos céus amarrado a balões de gás Hélio. Kevin quer aprender a virar música. Um massacre ocorre na nova escola.
A realidade de violência social e crueza de sentimentos se apresentam como conteúdo inesgotável, inalcançável, indominável. Os diálogos, como descrito anteriormente, tornam-se impossíveis uma vez que a história escapa da possibilidade de uma compreensão totalizante, de uma verdade sobre os fatos, de uma solução viável. A vida não tem caminhos certos, retos. A busca pelo sonho parece ser a saída para tirar aqueles personagens de um lugar de consciência banalizada, e Kevin é quem tem a passagem para este outro lado. Kevin quer ser música, e em meio aos horrores, ser música é o desejo mais racional. É uma criança que quer ser música, e para a realidade de uma criança isso faz sentido. Assim como voar com os balões. O que não faz sentido é quando a brutalidade do mundo adulto invade, sem dó, a dimensão onírica do mundo infantil. Kevin quer ser música e toda a incompletude deste desejo não cabe em palavras. O corpo fala.
O trabalho de corpo desempenhado pelo elenco é preciso e detalhado. A movimentação tão divergente da cotidiana ao encontrar um texto também fora desse contexto promove uma relação que causa uma sensação de coerência na leitura apresentada dos fatos. Mais do que isso, a estética corporal atinge os lugares nos quais o texto não chega. Como se preenchesse seus vazios, suas falhas e lacunas. O corpo é texto em estado carnal, dão materialidade ao estado de presença dos personagens. É o corpo, em cena, que cria o tom e o ritmo desta sinfonia.
O que ainda sobrar de lacunar na dramaturgia pós-texto, pós-corpo, é o espaço livre para a autoria do espectador, para a sua reflexidade ir ao encontro da criação final, à sua leitura sobre a obra. O zoom dado sobre o mundo paira em cima de uma parcela muito complexa, e que se acostumou ver vulgarizada nos noticiários dos jornais. A violência não é degustável, agradável de ver, mas tem que ser vista. Não é para se comover, é para se espantar, é pensar sobre ela.


UMA POÉTICA DE INCOMPREENSÃO PARA O HORROR

No trabalho criativo de um grupo que se batiza como Teatro Inominável, cabe o espanto que se sabe incapaz de nomear o horror. Observa-o, encara-o, mas não tenta explicá-lo. Sem nome, não há definição nem familiaridade possíveis, só estranhamento. Esta é uma distinção essencial entre o espetáculo “Sinfonia Sonho” e o romance que nutriu sua dramaturgia, “Precisamos Falar sobre o Kevin”. Enquanto a literatura da norte-americana Lionel Schriver nos apresenta o ponto de vista parcial de uma mãe-narradora que revê as memórias familiares puxando algum fio de explicação para o massacre cometido pelo filho, a obra do diretor e dramaturgo Diogo Liberano desprende-se da ânsia por sentido, descrê da análise psicanalítica e da possibilidade de compreensão.
Outra divergência central está na ausência de culpa – ao menos individualizada. Kevin, o filho, era o autor das mortes e, portanto, o culpado inegável no livro. Sobre sua mãe também pairava o peso da responsabilidade que se confere aos progenitores. Nesse ponto, contudo, o espetáculo se desvia, seguindo a liberdade natural de confecção de uma nova dramaturgia já prevista pelo diretor desde o princípio, mas repentinamente atravessado pela notícia do massacre de alunos em uma escola carioca por um atirador de 23 anos. Os abalos da tragédia real foram sentidos e absorvidos pelo grupo, de modo que a violência que interrompe a infância se consolidou tematicamente, e a atribuição de culpa parece tão impossível quanto a tentativa de explicação.

Os personagens densamente delineados pela autora norte-americana sobrevivem na encenação despregados de grande parte do contexto original, mas um fato significativo se mantém: a cegueira de olho de Célia, irmã de Kevin. Alusão ao Édipo, cujos olhos foram furados, ao qual o diretor carioca se contrapõe tomando por referência o “Anti-Édipo” de Delleuze e Guatari, adicionando um vórtice de sonho, onde os desejos são livres, à estrutura familiar piramidal. Mais que isso, Liberano apresenta a família toda fantasiada com tapa-olhos, numa imagem pungente de um núcleo cegado, que recorda uma frase do “Ensaio sobre a Cegueira”, de Saramago – “a responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam”. 

O grupo carioca se coloca nessa posição de olhar de fora uma tragédia contemporânea, ciente de que não tem como acessá-la por dentro sem preencher falsamente vazios que desconhece. A arquitetura do espaço cênico funda esse distanciamento. Enfileirados em cadeiras, os atores, com seus personagens latentes, acompanham a leitura do texto pelo diretor-narrador, até que chegue sua hora de ir ao centro do palco representar. A apropriação da realidade é mediada tanto por essa narração quanto pela intervenção de duas jornalistas, que, tal como o narrador, chegam ao palco vindo da plateia e reafirmando, assim, a conexão do grupo com o real, com a população e a cidade – não apartados na coxia numa arte descolada do mundo.
Ao mesmo tempo, não há pretensão de realismo. A presença dos atores sentados enfrentando com gravidade a plateia contém a imobilidade da ausência de futuro, mas também uma postura de desafio antirrealista que ajuda a estabelecer a tensão latente em cena. A tragédia é exposta como encenação, como construção coletiva de uma poética que tente elaborar o horror – enquanto, para os personagens adultos, não ser capaz de enfrentar o horror deflagra novas tragédias.
A sinfonia que batiza o espetáculo se traduz em partituras físicas que fazem de cada personagem uma linha melódica distinta – o mais perto que podem chegar do sonho de Kevin de tornar-se música. A pesquisa corporal permitiu que esses seres se comunicassem por posturas e gestos, pelo modo de seus corpos se sustentarem no chão e se moverem no ar, expressando uma essência intangível. Kevin e Célia são as composições de personagens mais sólidos – as crianças despidas de ingenuidade. O pai delas e o casal de vizinhos vagueiam no ar etéreo do luto. A mãe se fixa na caricatura do automatismo apressado da vida adulta, como se nunca estivesse de fato ali. Ao contrário de Thomas, o filho dos vizinhos, tão presente em sua ausência.
Liberano recortou do romance trechos passageiros que no espetáculo se dilatam reescritos poeticamente, como o ensaio de Kevin para a peça da escola, do qual nasce seu desejo de ser música. Com isso, o dramaturgo problematiza não só a representação, mas a possibilidade de colocar-se no lugar do outro e compreender o que é diferente de si: uma experiência de alteridade. A música escapa do sistema racional, como outra forma de expressão fora da linguagem. O sonho – materializado em Thomas – exerce semelhante função no espetáculo, um espaço de manifestação do eu, do não-decodificável. 
A construção da infância, dos jogos de cúmplice provocação entre irmãos, faz pairar sobre o espetáculo uma peculiar lógica infantil, com sua dilatação da razão, que soa nonsense em um mundo regido por adultos, mas sublinha o absurdo desse mundo. O delírio da realidade não acomete só a mãe de ego inchado pela carreira ou a outra, de barriga inflada por uma falsa gravidez. É uma sociedade inteira que participa do delírio. Vêem-se adultos com fraquezas infantis e crianças que precisam responder a demandas adultas: identidades e maturidades distorcidas. “Às vezes, o aniversário não funciona”, diz Kevin a Célia. A vida não direciona os desafios obedecendo faixa-etária.


As duas jornalistas que enfim irrompem em cena trabalham sobre o reforço de clichês do sensacionalismo midiático diante da tragédia. Em suas ações não há o espaço da dúvida. Nisso, entram em atrito com o espetáculo, pontuado de lacunas e incompreensões. É sintomático quando uma das jornalistas pega o roteiro das mãos do narrador: o efeito do microfone e da prosódia radiofônica empostada cria uma espetacularização que se contrapõe à crueza da leitura neutra do narrador, de seu respeito aos fatos e aos espaços de absorção. O espetáculo cumpre um tempo de sustentação essencial, sobretudo, à cena derradeira.


tempo morto, tempo posto. metáfora morta, metáfora...*

por valmir santos

o mundo está encolhendo. e os artistas da companhia teatro inominável, do rio de janeiro, revelam sua angústia diante do infantilismo adulto. a patologia se espraia, viral, notória, nas veias públicas e privadas. daí o cometimento do antivírus “sinfonia sonho”, celebração e cerebração das artes cênicas com o frescor e a grata surpresa pespegados pelos jovens criadores cariocas.
nesse espetáculo estranho, violento, trágico, corrosivo, a dramaturgia espreita um acontecimento real: o assassinato de dez crianças e o ferimento de outras colegas de uma escola do bairro de realengo, em 2011, por um rapaz doente, um ex-aluno. o espetáculo tangencia o episódio midiático e vai pisar em outras sombras colaterais, como a família disfuncional e a terrível incomunicabilidade entre pessoas que moram sob o mesmo teto.
as referidas distâncias são apropriadas como um dos dispositivos de cena. o diretor e dramaturgo diogo liberano corrompe, colaborativamente, as pistas facilmente assimiláveis sobre duas famílias vizinhas. não há caracterização de personagem entre os nove atores encarregados de dar a ver aos espectadores o núcleo pai/mãe/filho/filha e o núcleo do casal que perde o filho único, fantasma a vagar durante a sessão. 
um narrador-autor pontua rubricas, fragmentos e fraturas de um texto espargido pela partitura dos movimentos. fieira de “quebras” radicam a noção de que o espectador é estimulado a construir a história sobre aquilo que o mobiliza. ou rejeitar tal afluência, o que seria uma pena esquivar-se dos silêncios, ruídos e metáforas que encontram moradas em outros recônditos não-verbais desse campo fictício fértil em analogias.
o encaminhamento artístico é o da livre escolha, a mesma que fez a companhia estudar durante meses as obras “o anti-édipo”, dos filósofos félix guattari e gilles deleuze, e “precisamos falar sobre o kevin”, do romancista norte-americano lionel shriver, até ser atalhada pelo noticiário de sua cidade. a realidade infiltrou-se no processo criativo que já tinha a crítica da representação em alta conta –, aliás, uma das bases aglutinadoras do inominável desde 2008, com então graduandos da ufrj e da unirio (entre os orientadores de “sinfonia sonho” estão os professores e pesquisadores eleonora fabião, ronald teixeira, desirée bastos e josé henrique moreira). 
ao contrário do que pode supor o espetáculo não abandona seu interlocutor à deriva, patinando no plano das teorias. os códigos de comunicação estão acessíveis, organizados engenhosamente na economia do espaço cênico (cadeiras, uma mancha verde expandida no tablado). na incisão do desenho de luz sobre os inconscientes em latência. na música incidental nada óbvia se se levar em conta o título e o desejo do menino de 9 anos que, na peça, é resoluto ao eleger essa arte como ofício, qual música interior. e principalmente no preparo técnico dos atores capazes de cumprir rigorosamente as frações de tempo e lugar sem deixar de afetar o público com os rompantes emocionais das crianças e adultos focalizados sob a condição humana. 
o contraditório fica por conta da meta representação, quando o espetáculo realça o telejornalismo sensacionalista com a caricatura de uma apresentadora e uma repórter, atrizes oriundas da plateia. os microfones em punho e o coloquialismo frouxo da própria cultura televisiva desviam demasiado da organicidade genuína exercida com sagacidade até então, passado pouco mais da metade. 
em seus desafios vencidos, que não são poucos, “sinfonia sonho” é mais um exemplo recente de como os departamentos universitários de artes cênicas potencializam o teatro de pesquisa desde a sua cadeia genética, ou seja, o pensamento e a prática do artista em formação propenso e estimulado a ousar com causa, beleza e tutano. 
*crítica publicada em ocasião do xix festival nacional de teatro de presidente prudente/sp 


o absurdo reconhecido no cotidiano*
por soraya belusi

“sinfonia sonho” (*), como descrito no programa do espetáculo, nasceu do trabalho de formação de um grupo de artistas, então estudantes da ufrj, cujo processo partiu do estudo do livro “o anti-édipo”, de gilles deleuze e félix guattari, e da adaptação do romance “precisamos falar sobre kevin”, de lionel shriver, que, em linhas gerais, tem como fio condutor a narração de uma mãe em busca de entendimento do que teria levado seu filho adolescente a cometer um massacre em sua escola. casos que, até muito pouco tempo atrás, pareciam fazer parte de uma realidade distante, coisas que só existiriam em países cuja cultura do capitalismo e esquizofrenia (citando os próprios deleuze e guattari) chegou a tal ponto capaz de gerar tamanha tragédia.
mas, no meio do caminho, o coletivo (formado pelo diretor e dramaturgo diogo liberano e pelos atores adassa martins, andrêas gatto, dan marins, virginia maria, márcio machado, laura nielsen e gunnar borges, além dos professores/supervisores) viu-se atravessado pela tragédia ocorrida em uma escola municipal do rio de janeiro, no bairro de realengo, tendo que modificar, assim, seu percurso dramatúrgico inicial. esse entrecruzamento de camadas entre real e ficcional, de narrativas próximas e distantes, do individual e do coletivo, do comportamento adulto e do infantil, do absurdo e do cotidiano, impregnou toda a linguagem que alicerça o espetáculo – entre o que está longe e perto, entre o quase naturalismo e o total estranhamento, entre a crueza o objetiva das palavras e a existência da poesia.
o retrato antigo de uma família arquetípica é o ponto de partida de “sinfonia sonho”, cujo centro do quadro apresenta ao público quatro personagens vendados. essa composição cênica harmoniosa é invadida e revelada pela entrada de um narrador, que irá nos apresentar, de maneira distanciada e objetiva, quem são aqueles personagens e o que os une ali. é justamente essa presença afastada, de fora de ação, que reforça a ideia tão presente na dramaturgia de quão complexa e impalpável é a tentativa de se explicar a violência e a dor, causa e consequência diretas do impacto de uma tragédia coletiva. o que o grupo propõe é “uma possibilidade de expressar o impossível”, diz diogo liberano no programa da montagem.
a montagem não busca explicar a tragédia, apenas a apresenta, problematiza-a, numa espécie de composição quadro a quadro, em que cada personagem delineia sua melodia no espaço vazio delineado no chão. a economia nos recursos de cenário e figurino permitem uma neutralidade em que se ressalta o desenho corporal e rítmico do jogo dos atores e dos personagens – como na cena de ‘apresentação dos personagens’ em que, numa espécie de dança de mãos, eles se contém uns aos outros para que não possam sair de seus lugares ou realmente se revelarem. a sinfonia do título se reproduz na partitura corporal que cada personagem apresenta, aliado ao sonho marcado não só pelos momentos em que kevin tenta se tornar música quanto pela permanente presença dos atores à margem da ação central. 
a crueldade expressa no jogo infantil – referência que me lembrou muitas vezes recursos utilizados na dramaturgia do absurdo por mestres como arrabal e beckett – serve de base à relação entre os irmãos célia e kevin, numa alternância quase cúmplice, concedida, de proteção e submissão. mesmo cega de um olho, célia enxerga o delírio que seus vizinhos estão submetidos e é capaz de compreender o irmão ao vê-lo indignado quando sua mãe diz que o fato de ele querer se tornar música é metáfora. os adultos é que se encontram em mundos imaginários, que insistem em não querer aceitar a realidade enquanto seus mundos interiores parecem desabar (eva que insiste em fingir que está tudo bem enquanto corre cegamente em busca do seu sucesso profissional, e moira, incapaz de aceitar a morte de seu filho tomas, vivendo uma gravidez delirante).
quando irrompido pela presença de duas jornalistas, o trabalho parece perder essa complexidade apresentada até então para a caricatura do sensacionalismo. é verdade que a mídia costuma se comportar de maneira ultrajante, superficial e desrespeitosa em fatos trágicos. mas a impressão é que a entrada desse elemento no espetáculo não acrescenta camadas de problematização às questões abordadas muito bem até ali pela dramaturgia. a presença dessas personagens acrescenta dinâmica à ação, estabelece uma conexão com a realidade banalizada cotidiana, mas, como na mise-en-scène da tv da vida real, pode desfocar a atenção do espectador do que realmente interessa.
as banais discussões de célia e kevin escondem reflexões sobre temas como a incapacidade de nos enxergamos mesmo que debaixo de um mesmo teto, o fracasso das relações inter e extra-familiares, a necessidade revolucionária de libertar o desejo, ou, para kevin, o direito de sonhar só com o que se quer e de virar música.
tomas também cumpre essa função de representar a incapacidade de seus pais de lidar com o horror da vida real, optando pelo delírio. o personagem vaga pela cena durante todo o espetáculo, sempre presente na moldura, mas ausente na ação. relação que rompe, num choque entre o onírico e o real, ao se dirigir ao público e narrar o dia em que resolveu tentar voar com balões cheios de ar amarrados aos pulsos e acabou virando comida de urubu.
neste quadro, as crianças já perderam a inocência, a possibilidade de “não sonhar apenas dormindo”, foram atravessadas pela realidade da pior maneira. são elas que pontuam o quão absurdo pode ser o cotidiano. 
* “sinfonia sonho” foi apresentado dentro da programação do festival estudantil de teatro, no galpão cine horto.


sinfonia sonho 
por ida vicenzia flores (da associação internacional de críticos de teatro - aict)

desde a simples apresentação dos atores no palco, frente a frente com a plateia, qual puros-sangues na pole position, sôfregos para disputarem um páreo - vamos nos preparando, nós, o público, para o que virá depois. enquanto o autor e diretor diogo liberato lê as rubricas, gestos impacientes brotam no elenco, tentando avançar sobre a plateia, mas capturados a tempo. tudo, no espetáculo, é preciso, medido. há realmente, impaciência e sofreguidão. e nada do que acontece em cena é aleatório, tudo é sopesado, medido. aliás, esse é um dos espetáculos mais limpos e precisos, em termos de ação cênica, a que me foi dado assistir, ultimamente.
estou me referindo a "sinfonia sonho" – na qual cairia bem um subtítulo: "uma narrativa de horror". na cena, nada é negado. estamos assistindo a jogos infantis, realizados por crianças inteligentes e precoces. há, no ar, um clima david lynch. mas não somos inocentes: só não podemos imaginar o golpe que vai nos ferir profundamente.
como observei acima, tudo é operado de maneira sistemática, para atingir a perfeição narrativa: bons atores, cenas bem resolvidas, equilíbrio de emoções. o desfecho pega de surpresa? não. mas o final é operado por dois atores que representam crianças. e sentimos uma dor profunda. não é bom relembrar essa dor. no entanto, é vida pulsante, e não devemos nos negar a ela. quem quiser assistir a um dos melhores momentos teatrais que se apresentam no rio de janeiro, ainda há tempo. e a autoria é de um coletivo de atores, em um exercício estruturado por diogo liberano, e orientado por eleonora fabião. diz david lynch: "se você quiser pegar um peixinho, pode ficar em águas rasas. mas se quer um peixe grande, terá que entrar em águas profundas. quanto mais fundo, mais poderosos e mais puros são os peixes". parece o óbvio, mas é apenas o belo.
estamos tratando de um ataque - massacre! - narrado ponto de vista infantil. (desisti de me insurgir contra essa mania que temos de copiar a matriz, e vou comentar, do ponto de vista bíblico... essa caça aos inocentes) como é possível, em nosso país tropical, ficarem os jovens atirando com armas de fogo sobre seus iguais? pura imitação! só lá em cima mesmo, a quem deus mandou o dilúvio... e o comércio de armas! por que será que o brasil não tem imaginação? e logo nas escolas, onde se está ensaiando uma peça infantil? "assim não vai sobrar coleguinha para o elenco", comenta um dos irmãos (não rigorosamente com essas palavras). "vamos ter que ensaiar tudo de novo!" - reclama o filho kevin, inteligente e precoce, que foi esperto - segundo a mãe maníaca - ao se livrar a tempo das balas! há humor negro, também.
não posso esquecer, de dentro de minha indignação, que se trata de uma tragédia moderna, e das boas. é teatro. e, sem saber quem é quem, neste coletivo (o programa não diz) destaco as interpretações dos dois irmãos, não sabendo qual é o mais genial - quase aposto no filho. os pais - e o casal desejoso de ser pai - e aquele ator que ronda, sobrevoa, o espetáculo - lembrando, coincidentemente, o filho morto de "quase normal". é tudo muito bom. o filho narrando a própria morte, ultrapassa a todas as expectativas do horror. no elenco, atores oriundos da ufrj, unirio, uerj (e, por ordem alfabética): adassa martins, andréas gatto, dominique arantes, gunnar borges, laura nielsen, márcio machado, natássia vello, rodrigo vrech, virginia maria/marcéli torquato. eles já montaram vários espetáculos, e com sucesso. o nome do grupo é "teatro inominável". destaque para direção de movimento de caroline helena, a quem posso encontrar nas trevas. o cenário de leandro ribeiro é despojado, facilitando as cenas através de sua nudez. e elas, as cenas, posso garantir, são um nó na garganta. mesmo assim, é bom ver bom teatro.


teatro em evidência*
daniel schenker 

sinfonia sonho assume determinadas referências, como ao livro precisamos falar sobre o kevin, de lionel shriver, e ao massacre ocorrido numa escola em realengo, em 2011. mas a encenação do grupo teatro inominável não permanece atada a elas. o diretor diogo liberano não apresenta kevin como um garoto que faz tudo para chamar a atenção da mãe e nem se vale de uma tragédia da realidade para propriamente traçar um panorama dos distúrbios comportamentais no mundo de hoje. liberano destaca os mecanismos de atuação – não só no quê se refere à persona construída por cada um no cotidiano como ao esforço para se apropria de experiências diversas (pelo menos, aparentemente) das próprias, a exemplo do processo de kevin durante os ensaios da peça no colégio.
mais do que a história que se conta, o que parece estar em questão em sinfonia sonho é o próprio ato de fazer. diogo liberano evidencia o teatro através de sua presença em cena lendo rubricas e descrevendo passagens que, porém, não são materializadas diante do público. aquilo que o espectador vê não corresponde ao que está sendo lido, evidenciando preocupação em investir numa cena que não se limite a ilustrar o texto. propositalmente, o diretor e o cenógrafo leandro ribeiro não camuflam a caixa preta do teatro glaucio gill e limitam os elementos cenográficos a um grupo de cadeiras, diferentes entre si e desordenadas à medida que o espetáculo avança, e a uma cruz verde demarcada no palco.
diogo liberano, com importante contribuição de caroline helena na direção de movimento, encaminhou os atores rumo à criação de partituras corporais que realçam as convenções sociais e, em alguma medida, aquilo que os personagens gostariam de expressar, mas oprimem. o elenco realiza a proposta com admirável domínio. nos figurinos (e isadhora müller e marina dalgalarrondo) imperam as tonalidades neutras. a iluminação (de davi palmeira e thaís barros) é expressiva em sua intencional economia.
* crítica publicada no jornal do commercio, sexta-feira 02 de novembro de 2012 (veja aqui)


abstração sonorizada do jogo perverso da inocência
macksen luiz

quando o massacre da escola em realengo mal completou um ano, a lembrança da violência é reavivada com a morte de crianças na sexta-feira, em coneccticut. o assassinato coletivo, mais do que periódico assunto a ocupar espaço nos jornais, também é tema, ainda que secundário, de sinfonia sonho, em cartaz no instituto do ator. a composição textual desta montagem assinada por diogo liberano se estende para além da questão factual das mortes em escolas, recorrendo a influências filosóficas e referências a romances, compondo universo enevoado sobre jogos infantis. o menino que deseja ser música, abstração sonorizada de vivências que a representação teatral ensaia e as experiências que a convivência familiar propiciam, desfaz a imagem de inocência. a colagem do texto de liberano se reflete com precisão na estrutura da cena, como uma leitura dramatizada de fragmentos que se descolam do linear para adquirir independência expressiva, reconstruindo-se como narrativa. os atores dispostos diante da plateia, sentados em linha no fundo do palco, abrem espaço para a representação de um sonho teatral, que começa a ser desvelado pela leitura das rubricas pelo diretor. a ação se desprega dessa pose inicial e das indicações a seguir num sucessivo desdobrar, que alcança autonomia dramatúrgica. a construção dessa arquitetura cênica, que estabelece relação umbilical entre texto e cena, se fraciona e dispersa como meio de dialogar numa intensidade em que a preparação corporal do elenco é de notável eficiência. mesmo com a visível juventude interpretativa, os atores compõem um ensemble, integralmente mergulhado nesta interessante e generosa proposta de uma cena arejada e vigorosa.